sexta-feira, 11 de março de 2011

Tratar o Real pelo Real

Na abertura das nossas atividades fomos brindados com as conferências de Gilda Vaz Rodrigues e Ida Amaral Brant Machado. Postamos aqui uma pequena amostra do que foi apresentado.


 Gilda Vaz Rodrigues
 Psicanalista


Tomando o simbólico como ponto de partida, o ensino de Lacan destaca duas dimensões do real. Uma que é produto do simbólico e outra que não decorre do simbólico, mas que só é pensável a partir do mesmo. Como vemos, a psicanálise está sempre às voltas com os binários – pulsão  de vida e pulsão de morte, princípio do prazer e além do princípio do prazer, tiquê e automaton, alienação e separação e muitos outros, sem esquecer o básico binário S1 e S2. Portanto, é curioso pensar o manejo do real a partir dessas  duas dimensões, ou seja, dois tempos lógicos no campo do real. Considerando essa tese, proponho-me pensar  tal manejo.

Operamos, então, com essas duas dimensões do real:  uma,  em que o trabalho analítico opera a redução do sentido que redundará na destituição subjetiva, nome lacaniano para a castração freudiana, e na primazia do significante e da letra; outra em que não há significante, tocando-se num ponto de impossibilidade da relação e de foraclusão do significante fálico.

Na primeira, o real é o que resiste à redução do sentido.  O umbigo do sonho, em Freud, é um exemplo do real como núcleo do simbólico, efeito do trabalho da interpretação do sonho; a outra dimensão diz respeito a uma ausência de significante, a foraclusão do Nome-do-Pai e a Não-relação-sexual . Quando se trata da psicose, por exemplo, falamos dessa outra dimensão do real, que não é produto do simbólico e sim, da foraclusão do significante do nome-do-pai. Falamos de algo que fica fora, que não é recalcado, que não tem representação, que, portanto, não entra no simbólico. Trata-se de um real sem borda significante.

Outro exemplo desse real  fora do  significante é o sexual em que não há o significante do outro sexo, o da mulher; daí, a aproximação que Lacan faz entre a mulher e a loucura. Podemos entender, por esse viés, o empuxo à mulher que ocorre na psicose. O real da impossibilidade da relação  é uma dimensão do real que não é produto do simbólico.

Constata-se, assim, que o conceito do real, que vem sendo formalizado por Lacan desde 1953, vai sendo tomado por pedaços.

 Colette Soler sustenta a tese de que o analisante entra em análise pela extração do objeto a, que toca exatamente no ponto da divisão estrutural, abrindo-se em duas dimensões: uma, significante, evocará o real como o impossível [...] e, outra, que não entra em cadeia, permanecerá fora da linguagem, surge como angústia e resta como pedaço do corpo excluído do simbólico e, portanto, incognoscível’. (SOLER. Colette. El sintoma y el analista – curso 2004-2005. Trad. Montesserat Pêra y Xabier Oñtavia. Formations Cliniques Du Champ Lacanien – College Clinique de Paris).

Se a primeira dimensão, que concerne o real como produto do simbólico, Lacan tratou no nível lógico - a lógica do significante -, a segunda dimensão do real  foi abordada com os recursos da topologia do nó borromeano, criando uma outra forma de nomeação que faz suplência à falta do significante que possibilitaria a inscrição na ordem do falo, ou seja, na ordem do significante. O nó borromeano opera como uma escrita, mas uma escrita que se propõe tratar o real pelo real e não mais a conhecida fórmula que se privilegiou nos anos 50, a de tratar o real pelo simbólico.

Poderíamos também dizer que tratar o real pelo real implica a operação do discurso do analista, como assinala Eduardo Vidal: ‘O discurso analítico é um dispositivo de outra ordem que, ao circunscrever no dito o impossível, faz com que o real alcance o real’. [Vidal. Um dispositivo em que o real alcance o real. In: Do real, o que se escreve? Revista da Letra Freudiana. nº 40. p.37]. Alcançar o real implica em chegar até o real. Lacan utiliza o verbo toucher na sua forma intransitiva indicando a impossibilidade de se apreender o real. Do real, aproxima-se sem tocá-lo, fazendo do real escrita, o que não implica uma escrita do real. (Vidal. Um dispositivo em que o real alcance o real. In: Do real, o que se escreve? Revista da Escola Letra Freudiana.nº40. P.37).

O impossível a ser suportado toca o limite do simbólico, o impossível de ser simbolizado.  Na clínica psicanalítica é esse real como o impossível de ser simbolizado, mas, no entanto, bordejado, cercado, pontuado, mitigado, que vai  deixando seu rastro pelo caminho da análise de cada um, possibilitando que se possa reconhecer nesse rastro, os restos que indicam o caminho do gozo de cada analisante. O rastro não é o traço. O traço, formulado teoricamente como traço unário, constitui o núcleo do Ideal do Eu. “O rastro é a marca de uma ausência [...] consiste em restos de significantes que se tecem numa rede de saber [...]. São trilhamentos daquilo que se decanta nos intervalos da palavra; são sulcos que traçam os caminhos na formação do sintoma” (VIDAL. Ibid).

A clínica do real implica em seguir esses rastros e dar-lhes o estatuto de uma escrita que trate o real pelo real. Como entender esse manejo?

É isso que  nos propomos pensar por meio deste trabalho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário