terça-feira, 10 de maio de 2011

A violação em Preciosa

Prefeitura de Belo Horizonte

A violação em Preciosa
(apresentação e discussão sobre o filme de Lee Daniels)


Flavia Drummond Naves
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi
31 de março de 2011


Segundo Roland Barthes, existe uma situação de cinema, e esta situação é pré-hipnótica. Seguindo uma metonímia verdadeira, o escuro da sala é pré-figurado pelo devaneio crepuscular (prévio a hipnose, no dizer de Breuer- Freud ) que precede este escuro e conduz o sujeito de rua em rua, de cartaz em cartaz, a precipitar-se finalmente num cubo obscuro, anônimo, indiferente, onde deve-se produzir este festival de afetos que chamamos de filme.” ( Roland Barthes, Saindo do cinema. Psicanálise e cinema, p121). O festival de afetos que vamos discutir aqui chama-se “Preciosa”.

No filme de Lee Daniels, Preciosa é uma adolescente que sofre a violação de seus direitos e vive ameaçada na sua integridade física, moral e social. Qualquer pessoa está sujeita à violação dos direitos humanos, mas, ela atinge muito mais aqueles que são excluídos socialmente ou pertencem a minorias étnicas, religiosas ou sexuais. (Mario Augusto Bernardes. Pesquisa Golgle, 27/3/11.) Preciosa sofre os efeitos de todo tipo de preconceito: sofre por ser negra, gorda, pobre e mulher.

No filme, o expectador é conduzido a testemunhar as cenas de violação vividas pela adolescente na escola, nas ruas e no lar. A experiência de violência doméstica mostra os traços marcantes que conduzem Preciosa à uma posição de objeto na relação com as pessoas que a cercam. Nessa cena, o nome Preciosa dá consistência ao sentido de objeto de grande preço, moeda de troca que ela é para sua mãe, um meio de obter o auxilio família fornecido pelo governo ou mesmo a prenda oferecida ao pai para realizar o gozo perverso do casal. A adolescente vive num lar que não é regido por nenhum tipo de lei, é a barbárie. A proibição do incesto é negada: sua mãe sabe, seu pai sabe, mas, mesmo assim, submetem a filha aos abusos sexuais e morais. Inserida nesse jogo perverso, ela é reduzida a objeto de gozo dos pais.


Mas Preciosa é também a que se dá vivo apreço e é por aí, talvez, que ela encontre uma saída como sujeito. Ela poderá ter lugar no desejo do Outro como aquela que é amada, acolhida, escutada. Nessa construção, os assistentes sociais, os mestres e os psicólogos terão um papel fundamental. Após escutar a adolescente falar sobre si mesma: o que sabe fazer, qual a sua cor preferida, a professora indaga: - Como se sente? – Aqui, dirá a aluna. Isso me faz sentir aqui. “Aqui” diz de um lugar, inclusão possível para um sujeito exilado de seu desejo e até mesmo de sua dignidade como cidadão. A inclusão poderia ser pensada na interseção sujeito e cidadão, produzida a partir de um movimento contínuo de um ao outro.



Os passos de Preciosa na direção de uma nova posição subjetiva e sua inclusão social

- O sintoma

Falhar na leitura e na escrita é um sintoma endereçado à escola que cria para Preciosa a possibilidade de um pedido de ajuda, ou melhor, seu sintoma é um pedido de socorro. Ao tentar decifrar as letras para produzir uma leitura, ela dirá: - Parece tudo igual para mim. A letra que não se dá a ler remete à violação da lei do incesto, negada para anular a diferença entre gerações, a diferença de papéis: pai, mãe e filhos, a diferença sexual. Tudo é igual, se a castração existe é para ser transgredida. É uma sorte a menina preciosa ter a capacidade de encontrar um sentido metafórico para aquilo que ela viveu como crueldade, na carne. Lá onde isso foi, ali devo advir (Freud). O sintoma é uma metáfora onde o sujeito está presente no sentido (Lacan).


- O amor

Ao ser violentada, Preciosa devaneia e se vê como uma estrela, uma atriz amada e reconhecida. Tanto a fantasia amorosa como o laço afetivo são importantes para fazer borda ao trauma sexual e lançar essa adolescente na esperança. É como criar uma promissória para o futuro: não tenho agora, mas posso vir a ter.

Assumir a maternidade faz a diferença para Preciosa, produz uma separação na sua relação com a mãe. Ao adotar os próprios filhos, ela retifica a sua posição de abandonada, colocando-se como a que cuida, a que materna. Ela faz da experiência materna uma de suas causas. Nesse ponto, ela sustenta diante da professora o desejo de ser a mãe de seus filhos e marca (também aí) a diferença de seu desejo na relação com o Outro. Assumir essa posição não é fácil se considerarmos que a mestra tem para ela um lugar de saber e é uma pessoa muito importante na constituição de seus laços afetivos.



- A leitura e a escrita

Num primeiro tempo, antes da revelação do sintoma na aprendizagem das letras, a matemática inscreve Preciosa na escola. Esse é um espaço fora casa, lugar para pensar e aprender, lugar para não enlouquecer. O professor de matemática aposta nisso e abre a via de um novo ensino para sua aluna: Cada um ensina um. Não poderíamos ler aí: ensina-se um a um? Um ensino onde a particularidade do sujeito está inserida.

Leitura e escrita, uma não é sem a outra. Nessa relação, Preciosa faz seu sintoma e ao ser escutada, extrai daí a letra de uma carta de amor que, segundo Lacan, é a única coisa que se pode fazer de sério com o que se ouve, com o que se diz, com o que se sofre.


Preciosa: - Ler e escrever todos os dias. Ela nota a preocupação no meu rosto e diz: - “a mais longa das jornadas começa com um passo.” Sei lá que droga isso quer dizer?


Mas ainda sem o saber, no passo a passo, o sujeito vai, não sem ser escutado. Após a longa jornada, Preciosa é a que se dá vivo apreço, a que é mãe, estudante, amiga e digna cidadã.

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