quinta-feira, 28 de julho de 2011

"Quem é essa criança?"

“Quem é essa criança?”
Todos somos PRE

Regina Macêna da Costa Vieira (1)
psicanalista e participante do Espaço de Estudo 
e Transmissão da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi



Lacan sustenta em ‘O estádio do espelho como formador da função do eu’ (1949) que o bebê depende de uma operação própria de antecipação diante da imagem no espelho, unificando sua imagem a partir do Outro. Isto deve ser realizado mesmo considerando a imaturidade biológica de que é acometido. Desta forma, podemos pensar a questão “Quem é essa criança? Todas são prematuras” (2) como uma formulação sobre a prematuridade que envolve este infans estruturalmente.

O bebê sempre nasce antes das possibilidades biológicas de se proteger, alimentar e locomover em comparação a maioria dos demais mamíferos. É fundamental um outro humano que viabilize estes cuidados. Mas isto não é suficiente: é necessário também que haja um Outro encarnado que tome este bebê a partir de seu desejo através destes cuidados e que possibilite a este infans se constituir enquanto sujeito.

Pensar a criança na sua relação com a estrutura familiar torna-se fundamental para a psicanálise. A partir da noção de que o sintoma da criança responde a algo do par parental ou de um dos pais em seu fantasma (LACAN, 1969) podemos formular qual a direção do tratamento na psicanálise para estes sujeitos ainda pequenos. O tratamento analítico de bebês e de crianças pequenas não passa por uma reabilitação de alguma habilidade que a criança não adquiriu ou perdeu e nem tampouco por uma orientação aos pais de como conduzir os cuidados e a educação de seus filhos. A psicanálise nos permite construir um saber sobre o inconsciente e o sujeito, mesmo este ainda em constituição.
 

É fundamental que o bebê ocupe um lugar no desejo do outro (Outro) (3), pois esta é a via de entrada na humanização. É fundante que o bebê venha diante de um “desejo que não seja anônimo”, como nos diz Lacan em ‘Nota sobre a Criança’ (1969). Um desejo anônimo guarda à criança um espaço no qual a estrutura da linguagem, do desejo e da falta não se viabiliza. A criança entra como puro Real tendo pouca possibilidade de inscrever-se como sujeito.

Podemos pensar que os bebês já apresentam sinais de sua subjetividade mesmo antes do tempo constitucional após seu nascimento. Pesquisas realizadas com fetos (PIONTELLI, 1995) nos mostram que já há no bebê ainda feto uma escolha. Isto nos é apresentado principalmente através das movimentações do feto diante de estímulos específicos. Segundo recentes trabalhos realizados por Marie- Claire Busnel, o bebê feto responderia até mesmo ao pensamento de sua mãe quando direcionado a ele. Para a psicanálise estas pesquisas podem ser importantíssimas, pois dizem de que a escolha do sujeito se apresenta muito antes da aquisição da fala, do reconhecimento de si como Eu e até mesmo de seu nascimento. 

Estes estudos permitem aos psicanalistas abrirem um campo de trabalho ainda maior com o sujeito. Assim como houve um tempo em que a psicanálise com crianças era algo inaugural, e por muitos considerada até inoportuna, o trabalho com bebês também tem sido inaugural. Com o tempo a psicanálise já conseguiu mostrar que o trabalho com a criança não é inoportuno e constrói que o trabalho com bebês, mesmo prematuros, é possível, necessário e ético. Vejam os trabalhos dos psicanalistas que atuam nas maternidades e nas UTIs pediátricas.

Nestes espaços pode-se perceber, por exemplo, através dos relatos de casos que Catherine Mathelin (1999) nos traz, como uma palavra pode tomar lugar de verdade para os pais: verdade indizível. Assim, a história de muitos bebês precisa ser contada e, por vezes, sustentada diante da paralisia dos pais, invadidos pelo Real na figura de um nascimento antes do tempo pré-determinado, diante de crianças que nascem com problemas orgânicos, genéticos etc. ou mesmo diante de todos os pais que tem no nascimento de um filho uma irrupção de um Real que os lança em sua história pessoal e em seu fantasma, os remete ao que é ser pai e ser mãe e ter sido filho (a). Então, podemos dizer que diante de qualquer nascimento os pais se deparam com questões para as quais não têm respostas “seguras”.
Não que os psicanalistas as tenham, muito antes pelo contrário, mas estes podem oferecer aos sujeitos – pai, mãe, filho – um lugar no qual uma resposta pessoal, única e inédita poderá ser construída.
 

Desta forma, todos somos PRE: não possuímos respostas, saber ou certezas que não sofrerão com a irrupção do Real. Os pré-maturos não são somente os bebês. 

Regina Macêna da Costa Vieira 
Psicanalista. Especialista “Clínica psicanalítica de Freud à Lacan” – Estácio de Sá / RJ.”. E-mail para contato: macenaregina@yahoo.com.br

(1) Psicanalista. Especialista “Clínica psicanalítica de Freud à Lacan” – Estácio de Sá / RJ.” macenaregina@yahoo.com.br
(2) Seminário na Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi – Rosely Gazire Melgaço
(3) Escrita ‘outro (Outro)’ proposta por Inês Catão, que busca destacar que a “inserção do infans no campo da linguagem (Outro)” não se dá sem o “estabelecimento de um laço com um outro semelhante (outro) encarnado”. (CATÃO, 2009, p. 20)


Bibliografia:
1.    ANSERMET, F. Reanimação neonatal. in: A clínica da origem. Rio de Janeiro: Contra capa livraria, 2003, p.48-68.
2.    AUBRY, J. AA criança na família. in: Psicanálise de crianças separadas. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004, p.273-340.
3.    CATÃO, I. O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage, 2009.
4.    LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
5.    LACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
6.    MATHELIN, C. Psicanálise em neonatologia. in: O sorriso da Gioconda. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999, p.21-32.
7.    PIONTELLI, A. O meio ambiente do feto. in: De feto à criança. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
8.    SOLER, C. A mãe na psicanálise. in: O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 87-97.


2 comentários:

  1. Rosely Gazire Melgaço7 de agosto de 2011 às 22:19

    O texto que Regina Macêna escreveu na conclusão do Seminário desse semestre:"Quem é essa criança? Todos são prematuros", consegue destacar conceitos valiosos para essa intrigante -Clínica com bebês-, ainda desconhecida para muitos, inclusive para psicanalistas. Esses não sabem, ainda, que os bebês "adoram Psicanálise"!!!! Ou seja, nesse campo de trabalho, é surpreendente os efeitos das intervenções.

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  2. A clínica psicanalítica com o bebê é instigante visto que além dos efeitos da intervenção com este, podemos também aprender com esta clínica para as demais, pois não há sujeito que não tenha sido bebê, como Arnaldo Antunes compôs:
    “Saiba!
    Todo mundo foi neném
    Einstein, Freud e Platão, também
    Hitler, Bush e Saddam Hussein
    Quem tem grana e quem não tem...”

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