Yolanda Mourão Meira
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de BH/iepsi
Pretendo articular as incidências do real na família com o livro de Lya Luft Reunião de família que, apesar de ficção, vou tomar como uma mostração, um fragmento clínico, buscando verificar como se apresenta o real naquela família.
Para pensarmos a família temos elementos imaginários – por exemplo, os mitos e as histórias que caracterizam a família –, elementos simbólicos – relativos a lugares, funções –; e elementos reais –ligados ao gozo, ao que não se representa na linguagem e circula pela família.
Em Reunião de família o que deveria ser um encontro “normal” de família num fim de semana na verdade vai apresentar toda a desarticulação, a solidão de cada um de seus membros, indicando como os encontros são faltosos e carregados de mal-estar. Algo acontece quando os membros da família estão juntos. Há uma pressão do coletivo que vai possibilitar que, de um a um, coloquem às claras tudo que foi arduamente escondido. Como se dá a interseção entre o coletivo da família e os distintos sujeitos?
Seguindo a abordagem de O Porão da família: ensaios de psicanálise , a proposta é fazer uma leitura da família usando a lógica do coletivo. Se, para a psicanálise, o que se visa é algo da ordem da produção do sujeito do inconsciente, a família não deve ser tomada como um todo, um grupo no sentido colocado por Freud (identificação com um líder que os faz identificar-se entre si) o que teria como conseqüência uma visão ideal da família: a da união, da busca de completude, a da harmonia.
Na leitura da família devemos levar em consideração tanto os aspectos do sujeito quanto os aspectos da família, dentro de uma lógica do coletivo: o advento do sujeito, levando-se em consideração que ele pertence a um conjunto familiar determinado, que além de transmitir a cultura, de ser sede da cultura, é sede do gozo pulsional, em conflito permanente com a cultura – fonte, portanto, de mal-estar. O coletivo incide, pois, na família trazendo uma diferença, um elemento de pressão, ou mesmo de precipitação: como com os prisioneiros tratados por Lacan O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada deve-se fazer um cálculo coletivo para localizar-se como sujeito.
O livro Reunião de Família é narrado na perspectiva de Alice, que vai passar o fim de semana com a família com o intuito de tratar do problema da irmã, que não está bem, após a perda do filho e se comporta como se ele estivesse vivo. No decorrer do livro as máscaras vão se desfazendo e mostrando os segredos, as perversidades, as verdades ocultadas que dizem respeito a sexo e à morte.
Filhos, órfãos de mãe, foram criados por Berta, uma mulher brusca, tosca, que cuidava dos meninos, porém, sem afeto. O pai, Professor, homem violento que massacrava os filhos, agora, começando a caducar, se encontra perturbado por mosquitos que ouve na orelha. A irmã Evelyn é atormentada pela morte do filho num acidente provocado por ela: enlouquecida se agarra em um boneco-palhaço como se fosse o filho. Aretusa, mulher do irmão Renato, se debate com o sacrifício de uma aluna (Corália) que tentou suicídio por amor a ela, enquanto Renato o irmão massacrado pelo pai é agora continuamente criticado e maltratado pela mulher. E Alice, que fugiu das loucuras familiares através de um casamento sem grandes emoções – águas paradas da rotina – se ampara na identificação de dona-de-casa cuidadosa. Mas a iminência do encontro familiar traz à tona a possibilidade de reencontrar o que estaria evitando: “Apenas um encontro de família: mas sinto-me como se estivesse à beira de um lago, um rio, mirando a superfície calma debaixo da qual se movem estranhas criaturas. Se as contemplar por mais tempo, serei a mesma pessoa?”
Alice busca satisfação na realidade virtual de sonho, da fantasia, onde o espelho revela a imagem de uma outra Alice. Lembra que na infância brincava de ser poderosa e inconquistável: Meu lado avesso, esconjurado, começava a ser o legítimo. E muito mais feliz. Esse imaginário se sustentaria quando o encontro com a família a faz se deparar com o que evita? A epígrafe o livro anuncia: sinto o medo do avesso (Miguel Torga). O que vê na cena da família remete a uma outra realidade, a uma Outra Cena . Não há como fugir das loucuras familiares, posto que está no meio delas e delas faz parte (do avesso).
Ao contrário do ideal de família completa, perfeita, harmônica, “toda” o que temos é uma família que não funciona bem, que é atravessada pelo mal-estar, pelo estranho e que faz transitar o “objeto a” de distintas formas. A família está ancorada na lógica do não - todo fálico, incluindo em sua estrutura um ponto de vazio, no qual não há palavra que possa dizê-la toda: não existe A Família, pensada dentro de um ideal de perfeição, mas Família por analogia à Mulher, restando-lhe a possibilidade de fazer encontros faltosos, contingentes.
No cap.7 Luft fala de um jantar de família, dos fantasmas, de uma segunda família que aparece no espelho da sala de jantar. Começa dizendo que os membros da família formam uma “estranha” cena à mesa de jantar. Anuncia aqui o campo do estranho (Unheimlich). Diz que nessa “meia luz” eles se parecem fantasmas. Para Freud O Estranho (Unheimlich) é também nomeado O Estranho Familiar. A família revela e denuncia o Estranho: o familiar pode tornar-se insuportavelmente estranho falhando os arranjos até então estabelecidos para a organização familiar e fracassando as tentativas de recobrir o Real. Logo após anunciar o estranho-familiar, a autora diz que uma segunda família janta no espelho que vai do aparador até o teto. “Uma feia rachadura sobe do canto esquerdo até o meio e divide meu rosto obliquamente em duas partes.” Interessante o percurso: ela enuncia o campo do estranho / do fantasma / do duplo (segunda família) e da divisão subjetiva (divide meu rosto em duas partes). O que vem a seguir é uma família tomada na dimensão do estranho-familiar, onde aparecem situações inusitadas e uma clara divisão: a família “real”, marcada por mentiras, decadência, máscara, podridão, e outra, a família “do ideal” que aparece no espelho. Interessante que a única pessoa que a autora diz não precisar ver no espelho é a irmã Evelyn que “naufraga na loucura abraçada ao filho morto”. Poderíamos pensar que a loucura de Evelyn anuncia algo da dimensão do real que o imaginário do espelho não recobre? Que farsa representamos diante do espelho, interroga Alice. Pois o que há é decadência e podridão: “há um vermezinho rosado movendo-se na rodela do tomate”.
“Mas a família do espelho em sua existência de sombras não liga para essas coisas, o seu mundo é outro. Ali todos estão salvos”. Aqui a autora coloca claramente que o imaginário é que salva a família da decadência, da ruína, dos restos de real que se apresentam como “o vermezinho” da salada. Continua: “tentamos tramar o fio de alguma conversa inofensiva, mas nossos pensamentos rastejam no chão como serpentes, ameaçadoras, que a qualquer momento podem dar o bote”. Apesar de quererem fugir, cada um de uma forma, algo que não foi simbolizado, ameaça irromper no real.
O que vem a seguir são considerações sobre a falta e a carência. A família “ideal” já não se sustenta. Uma a uma as máscaras vão caindo e deixando aparecer o que não tem conserto, o mal-estar, os segredos e histórias mal contadas, as repetições: um pai violento e sem amor que foi expulso da família de origem pelo pai violento e alcoólatra, o que se repete na própria família, no tratamento que dá aos filhos; uma mãe morta precocemente, pouco falada, mas “trazida” nas brincadeiras de mãe e filha das duas irmãs / e de Renato com a empregada / e talvez também loucura de Evelyn agarrada no boneco-filho morto.
A redoma frágil vai se rompendo nos outros encontros, especialmente nos jantares onde a “cumplicidade na mentira” vai se desfazendo, a fala descongelando e os gritos vão se dando: quem somos afinal? As imagens que me rodeiam essas sólidas coisas familiares: o que ocultarão de mais secreto? As pulsações de uma vida que não se vê...mas estão lá nos subterrâneos... E podem reaparecer... A pergunta quem somos afinal? remete à dificuldade de se posicionar frente ao subterrâneos do inconsciente, ao avesso, onde, entretanto, a vida pulsa. Há sempre uma idéia de que as coisas sólidas familiares ocultam uma verdade. Uma metáfora interessante – a da árvore cortada – dá idéia de que o reprimido, recalcado, cortado, não morre, reaparece com toda a potência nas frestas, nos interstícios, nas hiâncias. Em contraposição à vida, ao que pulsa e re-aparece insistentemente, encontramos no texto a morte e vários morto-vivos: Corália a aluna de Aretusa , o pai (enterrado vivo, batendo no caixão,); e a própria Alice que ao se refugiar na vida de dona-de-casa sem emoções, deixa em suspensão a sua sexualidade, sua feminilidade e sua violência. Por outro lado, a morte de Cristiano, mal elaborada por alguns, forcluida por outros, se faz presente em todo o texto. Desde que chegou na casa do pai, Alice, acha que Cristiano vai aparecer. Vê caras (do boneco ou de Cristiano) ouve passos de criança, barulho da árvore cortada e do balanço com uma criança.
Há uma elaboração precária do luto, que tem no esteio outra perda fundamental, que é a da Mãe. E esta, deixa marcas profundas em todos os filhos, pois remete ao desamparo: Ninguém nos falava em nossa mãe, era como se tivéssemos nascido sem ela; desenraizados.
Ao lado dessa ausência radical, a presença de um pai rígido, violento, distante: o velho Rasputim... olhos: laminas frias furando a alma da gente, encontrando o menor grão de sujeira. Pai esse que deixou marcas profundas em todos os filhos que andavam encolhidos procurando não ser notados com medo de serem repreendidos. Mas, quando o pai não estava presente às vezes pareciam demônios, gritando sem motivo aparente.. E esses demônios, bichos descontrolados (ou pulsões desgovernadas) vão aparecendo nas demais reuniões, quando o pai já não sustenta a posição anterior rígida e repressora mostrando, ao contrário, uma decadência, um relaxamento, que em outros tempos não se permitia.
Vemos em duas situações: no embate de Renato com o pai e no de Alice com a cunhada. Renato acusa o pai de nunca ter sido pai , mas carrasco. E Então os vermes estão comendo o senhor, antes da morte? Quero que apodreça! Situação de crueza, crueldade, selvageria, que ninguém consegue conter ou impedir exatamente porque ele traz o que todos haviam silenciado: o desejo de morte do pai. Mas talvez ele tenha falado por todos nós .A agressão diz respeito ao desejo de morte do pai tirano, compartilhado possivelmente por todos os filhos, o que remete ao Mito da horda primitiva, inventado por Freud, no qual os filhos matam o pai e se banqueteiam com o seu corpo. Somos animais que se lançam sobre o mais velho, mais fraco, que antigamente os tiranizou; vão dilacera-lo.
No grupo familiar , o real em jogo pode ser denunciado pelos segredos encobertos, o gozo não-dito. Nesse sentido, questão interessante que o livro trata é da Mulher. Aretusa faz um jogo de contrastes com Alice, pois ela retrata a mulher sensual, que causa desejo até nas alunas adolescentes, enquanto Alice reprime a feminilidade, vivendo-a através do espelho, através da Outra - mulher, parte esta que só pode viver nos sonhos ou nas fantasias de encontros ardentes com amante. Daí que, o aparecimento do segredo de Berta, figura aparentemente assexuada, que recortou figuras de mulheres nuas com os sexos entreabertos é avassalador para Alice, pois remete ao que é da ordem da própria sexualidade, que pode também ser desnudada e horroriza, pois diz respeito ao real do sexo da mulher. Por outro lado, Aretusa reflete a imagem de uma Alice que ninguém conhecia, e essa imagem tinha haver com sua sexualidade: uma Alice suja, louca, pervertida, má . Sentindo-se desnudada de maneira vil, sente um ódio que nunca se julgou capaz e acusa a cunhada de destruir as coisas ao seu redor. Convoca, entretanto, o lugar da vítima: Agora quer outra vítima?.... É como dirigisse uma pergunta a esse Outro, encarnado no momento por Aretusa: o que quer de mim? Che vuoi? Os outros continuam calados; estão paralisados. Nosso descontrole aliviou suas tensões, nossa dor os distraiu de seu dramas.
Por ultimo Alice escuta: Você pensava que estaria segura na sua vida confortável enquanto os outros iam se desgraçando? E conclui : “talvez agora me acolham melhor no seu meio; estamos todos igualados, não passamos de animais condenados.”
Vemos aqui, o que acontece em muitas famílias, quando diante uma situação avassaladora, as pessoas como que se economizam, quando os outros vivem as cenas de tanta intensidade emocional. Podemos dizer: uns condensam o gozo que circula na família. A narradora vai mudando a narração intimista do eu e passando para um “nós” que achata as diferenças ao invés de revelá-las, o que redunda, no final, em “estamos todos igualados” – na sujeira, na agressão, na maldade, na condenação.
Alice convoca a morte, colocando-se numa situação masoquista, de submissão ao castigo que supõe ser imposto pelo outro. Ser aniquilada pela morte, daria expressão dramática à posição em que se colocou: objeto do outro.
É possível recompor o quadro familiar? Na fala de Alice: Sei apenas que ...queremos recompor o quadro familiar, não queremos ser animais, não queremos ser loucos ou sujos. Mas não conseguimos...Estou aliviada, vou pegar o táxi, entrarei no ônibus, chegarei em casa...O mundo voltou a ser ordenado...
Não se sabe o que se seguiu a essa reunião de família, onde o real irrompeu de forma tão avassaladora. Se isso tivesse acontecido numa sessão de Psicanálise com família, o desfecho poderia ser diferente: o trabalho com a família poderia ter permitido aos distintos sujeitos se posicionar diferentemente fazendo uma passagem de um familiar que estranha ao confronto com o Estranho Familiar. Não se trata de negar, mentir, e voltar tudo ao que existia anteriormente, mas, de se apropriar desse real e poder fazer algo com ele. Talvez, fazer uma escrita.
Vemos que Família pode evocar sentidos múltiplos, que coexistem simultaneamente. Usando o modelo do cristal – um agregado formado pela organização de ligações de cargas opostas – as distintas versões da família podem se justapor. Em Reunião de Família vários sentidos de família vão aparecendo, sendo que o avesso anteriormente mantido oculto, vai se insinuando e aparecendo de forma menos metafórica, mais crua, e até mais selvagem, na medida em que as reuniões vão acontecendo. Se o real traz uma ameaça de dissolução , não se trata de visar uma conciliação, pois se a família vem a preencher a "fome", (uma das derivações em torno do significante "família"), aí está o real, o mal-estar. Assim se chega ao limite do interpretável e é aí que se escreve.
É disso que Reunião de Família faz uma mostração.
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