quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Trama e o Nó

Ana Lúcia Bahia ¹


PALAVRAS                           -                       CHAVE MOTS-CLÉS


SUMÁRIO                              -                      SOMMAIRE

Palavras chave: symptom, real, positions in front of real.

Sumary: This text brings three forms of positions that can be taken by someone in front of the real. One text talks about a poet and how he gives up in life, another one is a clinic fragment and the last is a poem that shows another form of position in front of the real bringing the art.


Sabemos que o sinthome por excelência é a forma de enodamento que o sujeito faz diante da falha paterna, e penso que a tessitura de um texto aponta para esse lugar, pois o que fazemos diante do real que a clínica nos apresenta, via sintoma do sujeito, senão tecer por meio da escrita essa tentativa de escrever um saber no real?


Para desenvolver esses conceitos tão amplamente discutidos, o sintoma e o sinthome, proponho me pautar em três referências, sendo duas delas literárias e a outra um fragmento clínico. Pretendo retomar a peça escrita por Antonio Quinet ArTorquato na qual ele traz textos de Torquato Neto sob a forma de dramaturgia; e o outro texto é a poesia “Cântico Negro” de José Régio. Poeta português, nascido em Coimbra, 1901, e que escrevia sob o pseudônimo literário José Maria dos Reis Pereira. Formou-se em Letras em Coimbra e por mais de 30 anos ensinou no Liceu de Porto Alegre. O livro Poemas de Deus e do Diabo o consagrou.

Para dar início à nossa discussão, partamos junto com Torquato Neto do significante “vermelho”. Segundo Antonio Quinet, ele vive uma batalha entre Tânatos e Eros e sua resposta a essa luta constante se dá através de sua arte, quando vem desafinar o “coro dos contentes”. Sai de Teresina, do bairro da Vermelha, da intrusão materna e de um pai pacato que cultivava rosas. Ao alçar voo, toma uma decisão: “Acho que vou ser existencialista. Mas aí serei escravo da vida... que pena!” (QUINET, ArTorquato, p.21).

Sabemos que o sinthome é uma amarração fundamental para que o sujeito se sustente; um nó que se articula no ponto mesmo em que o pai se mostra fora de sua capacidade simbólica, como real, gozante, e esse gozo se apresenta sem possibilidade de se tornar metáfora. Um gozo suposto pelo sujeito ao Outro, o gozo do incesto. A ameaça da castração que tem como consequência a submissão à lei do significante não opera nesse ponto.

Quando Torquato deixa a “Vermelha”, parte em direção ao Rio de Janeiro e à posição “escravo da vida”. A mãe lhe diz: “– Abandonando a Vermelha, seu querido bairro de sua cidade!”; e Torquato lhe responde: – “Não é minha cidade: é um sistema que invento, que me transforma e que acrescento à minha idade” (QUINET, p. 25).

Esse ‘sistema’ inventado por ele nos leva a pensar em uma resposta à carência paterna inferida aqui nesse pai pacato, quase ausente, que não fazia barra à intrusão materna e também na mostração que sua poesia faz, sustentando esse sujeito. Nesse ponto pensamos que à maneira de Joyce, Torquato fazia com sua escrita um ciframento/deciframento de seu enigma através de seu texto. Há um ‘fazer-se um Nome’ na medida em que diante do Outro, ou melhor, da falta do significante no Outro, ele se torna “o poeta do Inconsciente que reencontra as ligações secretas e perdidas entre as palavras e as coisas e na sua ousadia chega a fazer explodir a linguagem num caos tenebroso da semântica. Destrói a linguagem para recriá-la e do sem sentido faz surgir novas significações e assim revela as brechas da realidade que ele nos incita a encontrar. Com seu texto poético, mostra o quanto a “arte é o retorno da imaginação à realidade” (FREUD).

Vemos nos poemas de Torquato esse caos da semântica: sua poesia “Destino” nos deixa entrever essas fendas:

“Preste atenção que eu te amo é na poesia

Nela meu amor é muito grande.

Quem ama não é você.

Seria uma espécie de Se, um C

Ceci Peri

Si ici

See that kind of Sea, deep blue sea” (QUINET, p.71).

Nesse mesmo sentido, Antonio Quinet ainda nos diz de Torquato: “Trata-se da lucidez do homem poeta iluminado pelo sol negro da melancolia que vê a tragédia da humanidade sem disfarces. E, apesar disso, ou, por isso mesmo, consegue falar dela transformando o horror em poesia, desvelando a íntima conexão da pulsão de morte com a criação” (QUINET, p. 11)

Penso que essa posição de “escravo da vida”, ao mesmo tempo em que “deu a medula e o osso” (expressão de Décio Pignatari) na geleia geral brasileira, foi um ponto de amarra, aquele sem o qual haveria um desmoronamento do sujeito. Em suas poesias, artigos e canções isso se escreve:

“Toda palavra envolve o precipício” (p.53), ou ainda,

“Uma palavra: um mundo poluído. Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Uma palavra é mais do que uma palavra, além de uma cilada. No princípio era o verbo e o apocalipse. Aqui, será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica” (QUINET, p. 62).



Ao final de sua trajetória nessa dramaturgia, o poeta pede: “Socorro! O Piauí está cada dia mais perto!” (QUINET, p. 56). Ali, na Vermelha (ou na linha vermelha do irrepresentável), bairro de onde veio. Ele diz então ao analista: “O poeta não me visita mais... meu repertório faliu” (QUINET, p.74). Deixa então sua cueca vermelha cair. Aquela que recobre o sexo e sua ausência da relação sexual, que recobre o real do desencontro da vida que a palavra traz em si, não lhe tem mais serventia. Mas o analista mantém o desejo; ele finaliza com um poema:

Vermelho

Ver melho
Ver melhor
Vermelho
Vir
Ver
Vermelho

Vir
          Ver
                   Ouvir

Vermelho
Vir melhor
Vermelho
Ver meu olho
De esguelha
A vermelha
A vida
A tirada. (QUINET, p. 74-75).

É nesse sentido que gostaria de comentar um caso clínico em que o sujeito apresenta uma lembrança encobridora de um fogão de lenha vermelho. Em sua vida apresenta também como sintoma algo relacionado ao vermelho, o que já pode ser entrevisto desde sua infância. Enjoava em ônibus que não tinham em algum lugar de sua pintura a cor vermelha. O vermelho como ponto de apoio diante do real, assim como a cueca de Torquato. Ao longo de sua vida, sempre fica no vermelho.

Sabemos que onde está o nó do sintoma se encontra o significante da falta do Outro. Aí temos o sintoma como metáfora que diz respeito ao inconsciente estruturado como linguagem. Passível de interpretação e submetido ao gozo fálico como efeito de interpretação. Nessa vertente temos o Nome do Pai, equivalente ao Édipo em Freud que vem fazer suplência, vem tampar a falta no Outro.

Assim, à medida que caminhava na análise, lembra-se que ficava no colo do pai dentro do ônibus, pois dali vê melhor. Parte então daí. Do vermelho ao vê melhor. Seu pai era velho. Quando nasceu ele havia “quebrado”. É diante desse pai “velho” e “quebrado” que o sujeito oblíquo “me” se articula. Ver- me- lho. No meio do velho.

Os efeitos do pai sobre seu filho “têm uma vertente real que Lacan chamou de ‘père-version’. Trata-se, de fato, do gozo encontrado lá onde o sujeito esperava receber a castração de um Pai simbólico. Gozo que mostra a falha do pai em tornar tudo simbólico...” (BRANCION, Revista Letra Freudiana, n.17/18, p. 150). Quando esse sujeito se depara com esse ponto de horror, esse pai que quebra e que não responde simbolicamente do lugar em que se espera o falo, o ‘me’ instala-se entre as sílabas do vê – lho e o ‘r’ muda de lugar. E esse sujeito põe-se a errar na vida.

Isso nos leva a pensar na articulação entre sintoma e fantasia, donde esse “erre” é o lugar no qual essa criança é espancada, fantasia alojada na medida da articulação do nó ao furo do Outro. Para Brancion, “o fantasma se constrói como consequência imediata da aparição do sintoma no sujeito e não o contrário” (BRANCION, p. 148). Sabemos que a fantasia se constitui dos restos daquilo que não encontrou caminho no gozo fálico. Freud já nos diz isso nas “Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental”:

“Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade de pensamento foi separada; ela foi liberada do teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio de prazer”. (Nota de rodapé): “Da mesma maneira, uma nação cuja riqueza resida na exploração do produto de seu solo mesmo assim preservará certas áreas em seu estado original, para protegê-las das mudanças ocasionadas pela civilização” (FREUD, p.281 v. XII).


Em uma análise é imprescindível que apareça o lugar no qual o sujeito se posiciona, ou melhor, como ele é inscrito por uma pulsão específica no campo do Outro. “A travessia se efetua quando este suporte mínimo pode efetivamente destacar-se no quadro do tratamento.”

(BRANCION, Revista Letra Freudiana, n. 17/18, p. 155). Esse objeto que se destaca ao final de uma análise vem a ser o olhar ou a voz. No presente caso, podemos dizer que o olhar se presentifica quando o ‘me’ se instala entre o vê – lho. Ver – me.

Assim, na trama do sintoma desse sujeito que se articula pelas trilhas do vermelho, no final da análise é possível perceber como o objeto e a posição de menos phi (-φ) se separam. Aonde o vermelho vinha obliterar o furo do Outro, emerge nesse momento sua posição de objeto a nessa trama. O lugar ocupado como objeto diante do olhar do Outro, por um lado, e sua posição de castrado e impotente diante da vida, por outro.

Mas no caso do sinthome, trata-se de uma mostração. Como pensar esse nó?

Diferentemente de Torquato Neto, neste caso o vermelho vem primeiramente como uma lembrança encobridora, de um sintoma que traz o vermelho como metáfora, para apenas no final fazer-se, a partir daí uma invenção. Vamos a isso.

Na escrita de Torquato há uma mostração daquilo que o atravessa, ou seja, a lança do significante mostrando a falta de possibilidade de se dizer tudo. Torna-se ele um Nome para responder a isso. Sua escrita mostra em alto relevo o furo da constituição do sujeito; a falta de resposta, a inconsistência. Mas mesmo assim ele não se sustenta.

No caso clínico do sujeito aqui apresentado, há uma construção em análise de onde os significantes vão se descolando, resultando um ponto de gozo persistente e não analisável, mas também passível de ser visto melhor. Há uma passagem da voz ativa – Vê melhor – para a voz passiva – ser visto melhor: no trabalho, na família, socialmente. Um pai que não olhava para esse sujeito mostra aí seu ponto de humanidade e faz surgir um enodamento desse sujeito a esse ponto de gozo. “A hipótese segundo a qual o sinthoma repara um ponto de fracasso da estrutura, em todo sujeito, torna explícita a necessidade da função do Nome como diferente da função da metáfora. (...) O sinthoma seria o modo particular de um sujeito inscrever a função do Nome, ou ainda o sinthome teria como função nomear com um Nome do Pai o ponto real onde o gozo do Outro é entrevisto” (BRANCION, Revista Letra Freudiana, n. 17/18, p.174).

Mas há aqueles poetas que não sucumbem diante dessa falta significante no campo do Outro e nos trazem belos arranjos, enodam de outra maneira esse mal-estar. Há dentre eles, como já havia mencionado anteriormente, José Régio, esse poeta português que se sustentou na vida de uma outra forma. Sua poesia “Cântico Negro” diz respeito à forma como ele se coloca diante do Outro. Por onde caminha esse poeta? Em sua poesia notamos como a presença do Outro é gritante, mas ele consegue percorrer outros caminhos, distanciar-se do Outro, deixar-se entrever nas trevas e se suportar por um ponto de letra.

Diferentemente de Torquato Neto, que “mergulha repetidamente em sua negra solidão” como sua música já ensaia “Vou pra não voltar, e onde quer que eu vá, sei que vou sozinho...”, em José Régio, seu Cântico é Negro, mas é cântico. Sua poesia diz de “Criar desumanidades” assim como Torquato Neto vem “desafinar o coro dos contentes”. Este desafina o coro enquanto aquele cria desumanidades em um cântico. Algo de uma harmonia sustenta de maneira diversa sua posição diante do Outro. Parece que nesse caso, “do insondável, do irrecuperável no gozo d’alíngua, o significante se faz letra. O inconsciente consiste em significantes passíveis de se escreverem, um por um, em letra” (VIDAL, p.119, Revista Letra Freudiana, n. 17/18).

Parece haver, no caso de Torquato Neto, um ponto de fusão (e difusão?) entre a letra, o sujeito e o Nome, assim como em Joyce, que se torna o redentor como forma de “uma compensação dessa demissão paterna, dessa Verwerfung de fato, no fato de Joyce ter se sentido imperiosamente chamado? (...) O nome que lhe é próprio, eis o que Joyce valoriza à custa do pai.” E ainda, “O artista não é o redentor, é o próprio Deus como fazedor” (Seminário o Sinthoma, p. 86e 78). Nesse capítulo em que Lacan introduz a questão se Joyce era louco ou não, após fazer essa constatação do “Deus como fazedor”, ele introduz os nós, como para fazer essa mostração daquilo que o simbólico em si só não sustenta. É preciso mostrar...

No caso de José Régio, ele se contrapõe ao Outro com um ponto de letra. Parece que o nó se apresenta de uma forma diferente. Não se torna um eterno questionador do Outro, lugar propício ao aprisionamento sintomático; mas há aí um savoir y faire com seu “Negro Cântico” quando, mais do que falar, consegue tocar com sua poesia.


Cântico negro

José Régio


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:

Criar desumanidades!

Não acompanhar ninguém.

— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tetos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

!Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou,

É uma onda que se alevantou,

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

Sei que não vou por aí.





BIBLIOGRAFIA


BRANCION, Marie Magdeleine Chatel de. O sintoma – Seminário Brasileiro. Trad. Ângela Ferreto-Jesuino. Revista Letra Freudiana – Do Sintoma ao Sinthoma, Rio de Janeiro, ano XV, n. 17/18, 1996, p. 127-167.

BRANCION, Marie Magdeleine Chatel de.Haverá um irredutível do sintoma? Trad. Analucia Teixeira Ribeiro. Revista Letra Freudiana – Do Sintoma ao Sinthoma, Rio de Janeiro, ano XV, n. 17/18, 1996, p. 168-175.

FREUD, Sigmund. Formulações sobre os dois Princípios de Funcionamento Mental. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de, v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 250 p.

QUINET, Antonio. ArTorquato: dramaturgia baseada na obra de Torquato Neto. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. 96 p.

REGIO, José. Cântico Negro - Poemas de Deus e do Diabo.

VIDAL, Eduardo Alfonso. Sintoma e escritura. Revista Letra Freudiana – Do sintoma ao Sinthoma, Rio de Janeiro, ano XV, n. 17/18, 1996, p. 116-124.


1. Psicanalista. Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi

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