segunda-feira, 5 de julho de 2010

A passagem adolescente: do familiar ao social

Thereza Christina Bruzzi Curi
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de BH/iepsi
therezabruzzi@uol.com.br"




Em uma jornada sobre a afetividade, não é demais lembrar que o sujeito humano é dividido, desde sua entrada no mundo, pelas pulsões de Amor e Ódio, sendo que nenhuma dessas pulsões é menos essencial que a outra: elas se amalgamam de tal forma que às vezes é difícil as distinguir. Raramente, nossas ações são obra de somente uma delas e ambas estão em ação em todo homem.

Assim, do ponto de vista da estrutura do ser humano, há um tensionamento desde sempre entre essas duas pulsões.

A adolescência tal como a conhecemos hoje, com lugar de idade favorita, não existiu sempre. Ela surge como um fenômeno da contemporaneidade: época em que a civilização ocidental produziu efeitos universalizantes e cosmopolitas no modo de vida de seus centros urbanos, em detrimento dos laços comunitários e tradicionais que uniam cada grupo social às suas origens históricas e culturais específicas. A contemporaneidade vem quebrar as certezas culturais e historicamente transmitidas.

A psicanálise interessa-se pela adolescência enquanto uma questão que apresenta vetores históricos, culturais e econômicos; levando a pensá-la como o produto de uma época. No entanto, para além desses vetores,é mister levar em conta a relação do sujeito com o que causa mal-estar na sexualidade durante a adolescência. Cada sujeito precisa encontrar respostas próprias para fazer sua passagem por esse momento que denuncia, uma vez mais, a impossibilidade estrutural do encontro com o real do sexo.


Com relação a essa passagem, alguns aspectos podem ser destacados.

Antes de enunciá-los, farei algumas considerações sobre a constituição do sujeito humano. O sujeito humano não nasce pronto, ele precisa ser constituído e inserir-se na ordem humana, que o precede e possibilita sua entrada. É no encontro com o Outro que o ser humano se constitui.O que institui a família como lugar privilegiado de transmissão da constituição subjetiva, implicando nesta transmissão,para Lacan, a relação a um desejo que não seja anônimo.

A criança nasce em seu desamparo fundamental, incompleta e absolutamente dependente de um Outro experiente que exerça a função de desejar que a criança viva. Esse Outro toma a criança como objeto de seu desejo, investindo nela narcisicamente e criando com a mesma uma ilusão de plenitude. Para tomar uma posição de sujeito que deseja, a criança precisa sair da posição de objeto, renunciando a essa ilusória satisfação plena – gozo. A partir dessa renúncia, a satisfação plena fica limitada, só podendo ser obtida dentro das regras de uma cultura. Essa renúncia implica na inserção na cultura e na produção de laços sociais, à custa de certo mal-estar, pois não há nenhum objeto que possa satisfazer plenamente os desejos do ser humano.

A criança assim constituída precisa, num segundo tempo, de apropriar-se de sua estrutura, carimbar sua estrutura. Retomemos, então, os aspectos importantes nessa passagem.

.O primeiro deles é que o impacto das mudanças corporais e as exigências sociais fazem furo no saber que o jovem tinha, trazendo-lhe intenso mal-estar, aturdindo-o, causando estranhamento. Tais mudanças furam o saber sobre seu corpo – o corpo ficou desengonçado; furam o saber sobre a sexualidade – o sexo proibido e calado na infância pode virar ato, sobre o qual falta-lhe saber; o jovem se decepciona com relação à promessa infantil de que lhe seriam dados, pelos pais, os recursos para saber lidar com o real do sexo. Há furos, portanto, no saber sobre os pais – os pais “já eram”; eles não só não deram os recursos, como não os têm. As coisas não encaixam bem entre pais e filhos o que acarreta o processo de afastamento em relação a família.

As mudanças furam o saber sobre as respostas de criança – o faz-de-conta não lhes serve mais para tamponar suas faltas, o que deixa os jovens vacilando numa “valsa-hesitação” entre suportar as perdas, renunciando ao gozo já perdido, e a incessante tentativa de recuperar o que se perdeu. Nessa valsa-hesitação, o jovem, é muitas vezes tomado, ora por arroubos de acreditar no “faz-de-conta”, empreendendo ações de teor impulsivo; ora por momentos de ensimesmamento.

Quanto horror e quantas fugas surgem na adolescência frente ao mal-estar causado pelos furos: fugas para o sono, para a voracidade, para os sonhos diurnos, para as drogas, para a ilusão, inclusive a ilusão das histórias de amor e dos grandes amores. Maneiras várias de não querer saber dos furos, ou das falhas. Frente a esse mal-estar que os furos fazem no seu saber, o adolescente fica “sem palavras” e precisa produzir respostas próprias que dêem conta de seu mal-estar.

O outro aspecto é que, para produzir respostas próprias e assumir a responsabilidade pelos seus atos, o sujeito adolescente precisa “queimar” aquilo que adorou, separar-se da autoridade dos pais,ao mesmo tempo em que, nessa ruptura e queima, há que ser sustentada pelo jovem sua identificação com a lei ordenadora transmitida pelos pais, a lei ordenadora da cultura. Esse paradoxo (ruptura e sustentação) gera um tempo difícil: para liberar-se da alienação aos ideais dos pais, o jovem está pronto a tudo, principalmente a oferecer-se como o pior dos escravos.

Os grupos, as turmas, são meios encontrados pelos jovens para lidar com esse paradoxo: conversam sobre os obstáculos colocados pelos pais e sobre as soluções encontradas em conjunto para fantasiar e viver suas aventuras. Estabelecem nos grupos regras próprias para lidar com suas dificuldades, regras sobre os gostos, sobre os namoros, como atualmente o “ficar”.

Entretanto os grupos podem tornar-se bandos, e esse paradoxo pode dar lugar a exércitos de todos os tipos, nos quais a submissão a um mestre absoluto está em pauta. Nesses casos, o jovem busca, em sua valsa-hesitação, o gozo passivo da criança-objeto do desejo dos pais. Na atualidade, um mestre absoluto encontrado por ele é o “capital”, que vem travestido de tantas formas, sendo uma delas o traficante.

Em geral, as imagens parentais educativas são vistas como entraves. Para afirmar-se, o adolescente “imagina-se” reprimido. Porém, a repressão tirânica o coloca em perigo, pois pode induzi-lo a atuações desordenadas. Caso se sintam desafiados, eles geralmente têm uma reação de independência súbita e muitas vezes catastrófica, algumas vezes agindo contra a própria vida.

Um terceiro aspecto é que o adolescente lida, ainda mais, com as questões da sexualidade: a possibilidade efetiva do ato sexual. O mito de que a adolescência é o tempo do encontro entre os sexos tenta escamotear a difícil verdade de que, para cada sujeito, não há complementaridade entre os sexos, mas sim uma impossibilidade estrutural do encontro com o real do sexo.

A responsabilidade pelos atos, seja ao nível da escolha amorosa, seja ao nível da escolha profissional, em geral é assumida através do enfrentamento de riscos. O jovem suporta inevitáveis desilusões e decepções – riscos – quando conta com o um imperativo de desejo que lhe dê coragem de engajar-se nas suas escolhas, assumindo a responsabilidade sobre seus atos.

Para exemplificar as metamorfoses da adolescência, segue a história da “Hungry Caterpillar”.

À luz da lua um ovo pequenino está sobre uma folha.


Na manhã de um domingo, o sol quentinho chegou e PUM! Saiu do ovo uma lagarta pequenina e faminta.


Ela começou a procurar comida.


Segunda-feira ela tunelou uma maçã. Mas ela continuou com fome.


Terça-feira ela tunelou duas peras. Mas ela continuou com fome.


Quarta-feira ela tunelou três ameixas. Mas ela continuou com fome.


Quinta-feira ela tunelou quatro morangos. Mas ainda estava com fome.


Sexta-feira ela tunelou cinco laranjas. Mas ainda estava com fome.


Sábado ela tunelou bolo de chocolate, sorvete, pickles, queijo, salame, pirulito, torta, salsicha, um bolinho e uma melancia. Naquela noite ela teve uma big dor de barriga.


O dia seguinte era domingo de novo. A lagarta tunelou uma tenra folha verdinha e depois sentiu-se melhor.


Nunca mais ela seria magrinha ou faminta. Agora ela era uma lagarta grande e gorda.


Ela construiu uma casinha chamada casulo em volta de si mesma e ficou lá dentro mais de duas semanas. E então ela abriu um buraco no casulo, mandou-se para fora...


Conclusão

A adolescência é esse tempo em que o sujeito, já tendo sua estrutura constituída, é despertado de seu sonho de criança, para uma passagem subjetiva da submissão ao Outro parental para fazer laço social.

Nessa passagem, o sujeito fica sem palavras para lidar com o impacto das mudanças corporais e exigências sociais. Suas respostas ficam “caducas”, seu saber sobre o corpo, sobre a sexualidade, sobre os pais, fica furado. O adolescente fica siderado, atordoado, sem respostas que dêem conta de seu mal-estar.

Os aspectos pertinentes a esse momento de movimento da estrutura – furos, paradoxo, escolhas – deixam o jovem exposto a riscos. Na busca de respostas, o adolescente sai tentando fazer suas escolhas e, tal como a lagarta Caterpillar, às vezes se “empanturra“ e tem uma “big” dor de barriga. Entretanto, é a partir de ser-em-falta que o adolescente pode criar alguma coisa. Tarefa laboriosa, pois é fazer existir algo a partir do que não se tem.

Nesta passagem do familiar ao social abre-se a possibilidade de transformar a satisfação pela violência em satisfação na cultura, a partir dos objetos dessa cultura – “as folhinhas verdes”; o que permite ao jovem “servir-se delas” em seu processo de inscrição na cultura e no laço social e, assim, elevar sua agressividade à dignidade de sua inserção na cultura. Esse é um caminho possível, que poderá possibilitar maior número de escolhas nas quais o imperativo do desejo de cada um poderá realizar–se em atos criativos, sejam eles solidários, esportivos ou mesmo artísticos, e não obrigatoriamente de violência e morte.

Entretanto, surge aí mais um paradoxo com o qual nos deparamos ao abrirmos a possibilidade de oferecimento de “folhinhas verdes”: não se tem um saber sobre o que é melhor para o adolescente. Aliás, é mister que aqueles que cuidam dos adolescentes partam de seu não-todo saber, abrindo assim possibilidades para os diferentes estilos de cada adolescente.

Além disso, a “folhinha” oferecida é “não-toda” verde: isso não quer dizer que umas sejam verdes e outras não, mas que não há um “objeto-folhinha” que proporcione a completude. E mais: elas não estão prontas, “dando sopa por aí”.



BIBLIOGRAFIA


ALBERTI, Sônia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC - Livro Técnico e Científico, 1981.

COTTET, Serge. Puberdade catástrofe. In Transcrição 4. Salvador: Fator, 1988.

CURI, Thereza Christina G. Bruzzi. Pai, não vês que posso perder-te? Grîphos-psicanálise. Belo Horizonte: Santa Edwiges, n. 15, ago./97. IEPSI.

__________________. A adolescência em questão. Grîphos-psicanálise. Belo Horizonte: Santa Edwiges, n. 16, /98. IEPSI.


FERES, Nilza. Seleção de textos da coluna: “Em dia com a psicanálise”. Jornal Estado de Minas, 93 a 97, Belo Horizonte.


LACAN, Jacques. “O Despertar da Primavera”. In Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce. Lisboa: Assírio & Alvim, 1989.


NOMINÉ, Bernard.” Adolescência ou a queda do anjo". In: Revista Marraio – Formações Clínicos do Campo Lacaniano, n. 1, Da Infância à adolescência. Rio de Janeiro, 2001.



Thereza Christina Bruzzi Curi
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi - E-Mail: therezabruzzi@uol.com.br
Consultório:(31) 3286- 0016


1 Psicanalista,membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
2 Expressão tomada emprestada de Bernard Nominé, Adolescência ou a queda do anjo. In: Revista Marraio – Formações Clínicos do Campo Lacaniano, n. 1, Da Infância à adolescência. Rio de Janeiro, 2001.
3 Nominé, Bernard. Op. Cit.

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