Flávia Drummond Naves²
Psicanalista.
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
flaviadnaves@terra.com.br
PALAVRAS-CHAVE
Psicanálise – Escrita – Amor
SUMÁRIO
A autora trabalha o amor entre o imaginário, o contingente e o impossível para pensá-lo como uma escrita.
MOTS-CLÉS
Psychanalyse – Écriture – Amour
SOMMAIRE
L’auteaur travaille l’amour entre l’imaginaire, le contingent et impossible pour le penser comme une écriture.
Em 1926, Freud³ enlaça o amor à morte ao afirmar: a morte é a companheira do amor, juntos eles regem o mundo. Portanto, não poderemos mais escapar à vertente real do amor.
Encore. En cor. Ainda, em corpo, de novo, outra vez, além disso. No Seminário 20, Lacan utiliza-se da homofonia entre as palavras francesas: corps (corpo) e cor (escansão de en/cor/re, ainda) para escrever esse além, esse mais, ainda. ...Nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza (4). Ao buscar uma escrita para o gozo, Lacan indaga sobre o amor e o desejo. Segue os conselhos de Freud e vai à poesia para avançar na formalização dessa escrita. Trata-se de percorrer um caminho que permita enodar os três termos: amor, desejo e gozo. Aqui, não vou me estender na complexa articulação do autor. Apenas faço um recorte nesse tripé, para pensar o amor entre o imaginário, o contingente e o impossível. Para o sujeito, o amor revela o encobrimento da não relação sexual, assim como o fracasso desse encobrimento. Enquanto mola, o amor apresenta diferentes versões. Falar de amor é besteira. Fazer amor é poesia. Escrever o amor, a letra de uma carta de almor, é invenção, escreve o impossível. O amor parte da ideia de ser uma só carne e vem para fazer suplência à relação sexual. A poesia pode ser uma maneira menos besta para dizer o amor (5), ou pode ir muito além, ao escrever o amor.
Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
Marguerite Duras (6)
A respeito da escrita de Duras, Lacan dirá: ela não deve saber o que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. Duras em seu livro Escrever afirma que essa frase tornou-se para ela uma espécie de identidade de princípio, um direito de dizer totalmente ignorado pelas mulheres (...). Não descobrirei jamais por que razão se escreve e como não se escreve (7). Não podemos ler aí a impossibilidade de dizer o gozo feminino? Assim como Santa Tereza e São João da Cruz, Duras é tomada pela escrita, mas diferente dos mesmos, sua escrita não é amor endereçado a Deus, não tem explicação em Deus. Para Duras, o ato de escrever é efeito de uma solidão conquistada, é o que ela afirma em seu depoimento sobre a escrita: “A solidão não se encontra, se faz. A solidão se faz sozinha. Eu a fiz (...) A solidão também quer dizer isso: ou a morte, ou o livro.” A escrita está no limite: vida e morte, amor e morte. É preciso escrever mais ainda, encore.
Pelo não.
Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
Ver, em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o
o fora
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.
Leminski
Assim inicia-se o seminário O feminino: um passo a ler, coordenado por Lucia Castello Branco e Jéferson Machado Pinto (UFMG, 2005). Eles indagam sobre a possibilidade de uma leitura do que se manifesta como furo. Lacan chama de literatura a letra situada entre o efeito de sentido e o buraco. Como ler o feminino, já que a condição feminina é marcada pela inexistência? Seria uma forma de ler pelo não como disse Leminski?
Para discutir a questão levantada por eles, proponho retomar o ponto de partida deste texto e pensar o amor entre o imaginário, o contingente e o impossível. Fazer essa articulação exige recorrer à leitura das categorias aristotélicas que Lacan faz no Mais, ainda. Ele utiliza-se de uma outra forma de negação e serve-se, à sua maneira, da lógica modal aristotélica para enodar Real, Simbólico e Imaginário. O deslocamento do não tem função de amarração entre necessário, contingente e impossível, que se articulam ao Imaginário, ao Simbólico e ao Real, respectivamente. O necessário é o não cessa de se escrever, onde ele localiza o amor como recobrimento imaginário da falta. O contingente dá a ilusão de que a relação sexual para de não se escrever e que algo não somente se articula mas se inscreve no destino de cada um (8). O amor se inventa entre o simbólico e o imaginário. O amor como tal se agarra no ponto de suspensão, na passagem do para de não se escrever, que é contingente, para o não cessa de se escrever, que é o necessário. Mas se o amor se agarra ao necessário, a contingência poderá apontar uma saída possível. Na psicanálise, o analista estará atento às surpresas das formações do inconsciente e de prontidão para erraten: sacar, adivinhar, acertar. Tudo dependerá da confirmação do analisando, só depois. Na literatura, aquele que escreve registra as ressonâncias das palavras e vai dando forma a toda essa litura, para fazê-la literatura (9). O efeito de sentido da escrita poderá causar no leitor um passo a ler. Nessa vertente, o amor na psicanálise e na literatura é contingente: pode acontecer ou não, quem sabe? Talvez. Para enlaçar o necessário ao contingente é preciso inventar um amour que inclua a castração, um “amur”, um novo amor, para lembrar a homofonia na língua francesa trabalhada por Lacan. E quanto ao possível, cessa de se escrever? Nessa categoria modal o não em sua forma discursiva está fora, mas cessar é um modo de negar uma continuidade, um modo possível para lidar com o gozo? A poesia é uma posição que se define por não ignorar o ponto de cessação, por retornar incansavelmente a ele, por nunca consentir em tomá-lo por nada (10).
Lacan, em R.S.I (11), afirma que o que pode atar, com um quarto termo, o I, o S e o R é, em Freud, a realidade psíquica (Realität) que tem um nome, complexo de Édipo, o que nos remete ao romance familiar de cada um. Seria essa a amarração em Freud. Lacan nos fala do Real em sua dupla negação, não cessa de não se escrever, como impossibilidade do encontro amoroso, lógica do não todo na qual se sustenta a psicanálise, o nó é uma escritura que suporta um Real (12) e por que não dizer uma escritura da psicanálise? Se o discurso psicanalítico vem marcar a impossibilidade do amor, resta a escrita de um amor que não cessa de não se escrever: letra de uma carta de almor. Para alguns, talvez, se possa dizer: fazer amor é fazer poesia. Em Freud, constatamos que o que se lê do Inconsciente é a falha. A escrita que suporta o Real não é uma escrita qualquer, é uma escrita marcada pela impossibilidade da relação sexual, impossibilidade formalizada pelo discurso psicanalítico. Estamos falando do real do sexo, que exige uma borda, a amarração borromeana (13).
Na literatura há, em alguns autores, o ciframento do gozo pela escrita. A poesia poderá fazer essa função para o sujeito ou não. Ela interessa à psicanálise por seu efeito de sentido que faz passar o furo criando uma possibilidade peculiar de transmissão. Só- letrar (14), nesse ponto a experiência psicanalítica e a literária se tocam, pequenos gestos de escrita, afinal: gestos de compaciência pelos corpos que sofrem e de alegria pelos que amam (15). E se alguns escritores são capazes de fazer tal travessia, alguns leitores, talvez, possam aventurar-se a uma absurda leitura de Duras:
O amor
Não posso escrever
Ninguém pode
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve.
Flávia Drummond Naves²
Psicanalista.
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
flaviadnaves@terra.com.br
BIBLIOGRAFIA
CASTELLO BRANCO, L. Está fora de causa acabar bem – biografemas de uma nem sempre possível. Aletria. UFMG, 2005.
DURAS, M. Escrever. Trad. Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
FREUD, Sigmund. O valor da vida. Entrevista concedida ao jornalista George Sylvester Viereck, 1926.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário RSI, 1975.
LLANSOL. Carta a Eduardo Prado Coelho (manuscrito inédito). Aletria. UFMG, 2005.
MILNER, JC. O amor da língua. Trad. Angela Cristian Jesuíno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
PORTUGAL, AM. Lituraterra: a relação sexual talvez. Belo Horizonte: UFMG, FALE, 2005.
VIDAL, Eduardo. Em torno do E da questão. Aletria. UFMG, 2005.
1 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
2 Psicanalista. Membro da Escola Freudiana de BH/iepsi.
3 FREUD, Sigmund. O valor da vida. Entrevista concedida ao jornalista americano George Sylvester Viereck, 1926. Publicada no Journal of Psychology, Nova Iorque, 1957. Tradução: Paulo César Souza.
4 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Idem, p. 35.
5 Anotações do cartel Mais, ainda. BH, iepsi, 2007.
6 DURAS, M. Escrever. Tradução de Rubens Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.47.
7 DURAS, M. Escrever, idem, p. 17, 19.
8 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda, p.198.
9 PORTUGAL, Ana Maria. Lituraterra: a relação sexual, talvez, p.1.
10 MILNER, J.C. O amor da língua, p.25.
11 LACAN, J. R.S.I, seminário de janeiro de 1975, p. 18-19.
12 LACAN, J. R.S.I, seminário de dezembro de 1974 p. 9, 10.
13 VIDAL, Eduardo. Em torno do E da questão. Aletria. UFMG, p.67.
14 CASTELLO BRANCO, Lúcia. Está fora de causa acabar bem – biografemas de uma nem sempre possível. Aletria. UFMG, p.29.
15 LLANSOL. Carta a Eduardo Prado Coelho. (Manuscrito inédito), citado por Lúcia Castello Branco in Aletria. UFMG, 2005.
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