PSICANÁLISE E INFANS?
Rosely Gazire Melgaço
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de BH/iepsi
(31) 3224-0656
Anos atrás testemunhamos o esforço para considerar a eficácia da Psicanálise com crianças. Hoje em dia, ainda nos vemos às voltas com o estranhamento frente às transmissões de psicanalistas que trabalham no campo do infans – aquele que não fala -, e dos que estão em seu entorno.
Esse encontro com a criança, com o Infantil, pode se produzir maciçamente traumático, seja para os pais, seja para profissionais que com eles atuam. Há sempre um efeito de sideração no encontro com o Real.
Freud reconhece que, certamente, o ato do nascimento imprime uma marca, mas questiona a generalização desse ato como um trauma. A isso Lacan contribui quando diz que “de trauma, não há outro: o homem nasce mal-entendido”. 1
Nessa original conotação do termo, Lacan destina ao ser- falante: o mal-entendido, desde antes de nascer, no “balbucio dos seus ascendentes”, nos desejos parentais e familiares expressos ou, inconscientes. Paradoxalmente, dessa descontinuidade que se apresenta, dessa óbvia herança truncada, pois, a criança apresenta diferenças, ela pode traçar sua singularidade.
Estamos diante de tantas novas descobertas e recursos da medicina quanto à fertilização e à esterilidade, mas será que os envolvidos – tanto os pais quanto os profissionais - estão preparados para lidar com os aspectos psíquicos decorrentes e inerentes à defesa da vida a que se propõem?
As novas operações tecnológicas da ciência, talvez, sejam mais velozes do que a necessária elaboração de seus efeitos subjetivos, tendo-se em vista as freqüentes situações de sofrimento e desorganização psíquica, quando envolvem dificuldades referentes a crianças recém- nascidas, de risco, as que morrem, as prematuras, os bebês e...seus pais, antes, durante e depois do nascimento do filho.
Com a ética da Psicanálise apontando o singular, o um a um, o psicanalista nessa clínica faz intervenções – por vezes, pontuais - com o vigor do não sabido e do equívoco , pilares fundamentais de um saber vivo que se renova e não cessa de surpreender e causar novos investimentos. A Psicanálise não opera antes que as experiências ocorram, mas ela pode operar diante dos primeiros sinais emitidos das experiências dolorosas. Não é preciso esperar um sintoma gritar, se nossa escuta for sensível a um sussurro – que pode ser um radical silêncio - e abrir espaço para a palavra.
Dos efeitos dessa clínica decorre uma importante perspectiva de avanços, na teoria e na prática psicanalíticas.
Outra articulação de valor é produzida quando destacamos que a relação de procriação, a reprodução de um corpo, está, com efeito, implicada na relação do sujeito com a morte, e a escuta do psicanalista quando convocado abre possibilidades de nomear a travessia por essas margens. Nesse contexto, transcrevo um fragmento de um escrito.
Camille Laurens é uma escritora francesa, autora de vários romances. Quando perde seu filho, decorrente de erro médico no trabalho de parto, ela escreve um relato cujo título é Philippe, uma autoficção.
“... Eu não quero um outro. Eu quero O MESMO. Eu O quero”. A parteira inclinada sobre mim, bem perto do meu rosto, na sala de parto, me demandando “dar um nome” à criança. E eu nunca senti tão perto a corrida contra a morte, contra o relógio, a rivalidade da morte e da palavra, e que era necessário absolutamente, com toda urgência, o “declarar”, o dizer, o designar, para que ele existisse.
E eu procurava desesperadamente um nome na minha cabeça – “Você sabia que era um menino?”- perguntava ela. Eu respondi: sim, sim eu sabia. “Então como pensava em chamá-lo?” E eu procurava sempre outro nome, não aquele, outro, o nome de outra criança – pois como aquele nome podia ser o de um morto?... Depois, por fim, soltando esse nome como uma derrota – Philippe -, soltando-o, aceitando, consentindo que fosse esse nome, daquela criança, aceitando que fosse ele, Philippe, aquela criança que morria fora do meu ventre. ‘Reconhecendo-o’.”
Camille luta para conseguir sustentar a função da nomeação. Surge como nomeadora, no ato de soltar o nome, tentativa de nominar o buraco, nominar o Real que ali se apresenta inominável. Quando Lacan, no RSI, trabalha o “nome do pai”, diz que num movimento inverso, um buraco turbilhona, ou seja, engole o nome, mas que há momentos em que cospe o nome. É o pai enquanto nome.
Ao considerarmos que o que não veio à luz no Simbólico aparece no Real,vemos que se o vazio não passar por elaborações, a experiência de morte pode retornar em outro lugar, sobrecarregando, por vezes, um futuro filho, ou um futuro descendente. O desejo de imortalidade e da sobrevivência assegurada e a concomitante negação da morte pelo ser falante podem impulsionar a tentativa de um re-nomear. Um “renome durável”, a ilusão da imortalidade através de um nome que se repete perpassando gerações, ou ainda, o nome dado para recordar ou homenagear ancestrais, tudo isso pode refletir tentativas de escamotear a dor efetiva de uma perda.
Camille ressalta que o que nenhuma realidade poderá jamais fazer, as palavras podem. Ela faz uma escrita, assim como uma escrita se faz no trabalho psicanalítico.
Rosely Gazire Melgaço
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de BH/iepsi
(31) 3224-0656
1 “O Mal-entendido”, texto de Lacan em “ Documentos para uma Escola”, publicados em Ornicar? (22-23), Paris, Editions du Seuil, 1981.
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