quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Escola e o Chiste

Rosângela Gazzi Macedo*
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.

“A liberdade produz chistes e os chistes produzem liberdade”.

(Jean Paul Richter, 1804)



A transmissão da Psicanálise consiste em fazer passar os efeitos do inconsciente, do impossível de dizer do Real na experiência analítica. Freud e Lacan tomam o Chiste como um dos modelos da transmissão da psicanálise e a proposta deste trabalho é pensar a Escola como o lugar para acolher, escutar e teorizar os efeitos das formações do inconsciente, dessa experiência de saber que é tema do Colóquio em Salvador.

A alusão do chiste como formação do inconsciente implica que há um efeito do inconsciente, padecido por um sujeito, "atropelado" por um significante que se mostra como proveniente de um outro discurso, o do Outro. Demonstra a existência de um lugar alheio ao eu, e que irrompe de modo inesperado nos ditos do sujeito, ditos esses que aparecem como tropeço, um desfalecimento, uma rachadura, e que nos tocam de uma forma particular.


O chiste, em alemão Witz, traduzido por tirada espirituosa, é na sua estrutura submetido à noção de inconsciente. Sabemos que este é um ponto difícil de formular; o inconsciente existe, mas em ato e está ali, produzido, realizado pontualmente, na falha de um enunciado ou em uma palavra singular. O sujeito se sente ultrapassado, sobressaindo o caráter de surpresa. Ao dizer o que é um chiste corre-se o risco de dar consistência àquilo que não existe porque só vamos saber se foi um chiste no "a posteriori", pelo seu efeito.

Os chistes executam, a serviço de seu propósito, a satisfação de uma pulsão, seja libidinosa ou hostil, em face de um obstáculo. A tirada espirituosa é alcançada somente quando o Outro a reconhece como tal. O pouco sentido da tirada espirituosa deve ser acolhido como um passo-de-sem-sentido, ou seja, deve ser acolhido pelo Outro como um passo adiante do sentido, o pas-de-sens, que em francês permite dizer no passo de sentido, o sem sentido.

A estrutura do chiste é a produção de uma distância, mas que se completa pelo seu reconhecimento feito pelo Outro. Existe chiste se for confirmado pelo receptor. Caso o receptor ache graça, isto significa que a palavra que o autor quis transmitir tem "espírito". Esse espírito é efeito da articulação do sujeito do inconsciente.

De um modo geral, um chiste requer três pessoas: além da que faz o chiste, deve haver uma segunda que é tomada como objeto e uma terceira pessoa, na qual se cumpre o objetivo do chiste de produzir prazer. Não é a pessoa que faz o chiste que ri dele, desfrutando, portanto, seu efeito prazeroso, mas o ouvinte.

Se existe o chiste, é porque o sujeito se encontra, segundo Freud a respeito do efeito do chiste, tomado pela sideração - Verbluffung - termo introduzido no texto do chiste que quer dizer: fulminado, siderado, embaraçado, estupefato, atordoado, que delimita a noção de uma posição subjetiva pela qual um sujeito aturdido fica sem palavras e, depois, é tomado pelo riso. No discurso do sujeito, há um significante enigmático que, se chega a manifestar no real ao sujeito tem o espantoso poder de siderá-lo, de deixá-lo sem voz, na impossibilidade de responder na hora.

O riso é a alegria que acompanha a surpresa, pela qual se devolve ao sujeito uma certeza quanto ao fato de que existe nele uma presença esquecida - que é uma presença sempre surpreendente, pois não pode acostumar-se a ela jamais, da existência nele de um desejo enigmático.

O sujeito do inconsciente só pode advir de um ato proveniente do Outro: não um ato de conhecimento, mas um ato de reconhecimento do que se diz mais além do que se consegue dizer. É neste sentido que ele se torna reconhecível, nesta manifestação de alegria que eventualmente é o riso, quando o Outro encontra uma maneira de mostrar que o reconheceu (“no tropeço reconhece a dimensão de um para-além no qual se situa o verdadeiro desejo, isto é, aquilo que em razão do significante não consegue ser significado”, Sem V, p.156)

O chiste tem a particularidade de que, uma vez produzido, ele se transmite sozinho, não é necessário uma instituição para transmiti-lo. Ele se transmite sozinho, boca a boca, tanto mais quanto o próprio autor do chiste é esquecido. Quanto mais se transmite, mais atesta a força de transmissão que lhe é própria.

O chiste tem o poder de transmitir ao ouvinte, para além do saber que veicula, um outro dom: a presença sempre tão radicalmente surpreendente de uma zona de não saber, que ele tinha esquecido e que, quando despertada, tem o poder de impor sua influência no saber, colocando-o entre parênteses. Diante do significante surpreendente, o saber que tínhamos, o que já sabíamos, aparece desprovido de qualquer possibilidade de ser utilizado para responder. Pelo despertar desse não saber surpreendente, somos, então, obrigados a dar um salto, do saber já sabido a um saber desconhecido, um saber que deve tornar-se um saber subjetivado.

Ao compararmos a transmissão da psicanálise com a transmissão do chiste, diríamos que o texto freudiano tem uma relação com o chiste por ser dotado de um poder de transmissibilidade que lhe é próprio. “Contraímos uma divida com a psicanálise que nos impulsiona a passá-la adiante, transferir o movimento. É como um chiste bem sucedido, é preciso passá-lo adiante:“Deve contá-lo” nos diz Freud. A vinculação do chiste com a psicanálise esta na radicalidade de que o chiste não se faz sem a terceira pessoa.

A descoberta freudiana tem uma chance de se transmitir, na medida em que ela consegue se dar como alguma coisa nova, sempre tão surpreendente como se tratasse ao mesmo tempo de uma descoberta primeira. A virulência analítica está em requerer do analista que ele possa manter essa dimensão do inédito, que não é nada menos que uma posição ética, a sustentação do desejo do analista.

O real coloca o sujeito em posição de esquecer aquilo que já sabe, para articular-se ao que ainda não sabe. A capacidade de pôr entre parênteses o já sabido é marcado por Freud quando preconiza aos analistas esquecer, a cada novo caso, tudo que já sabiam, estabelecendo, assim, o princípio da sua ética.

Para um analista, um caso é sempre inédito, existe a mais estrita relação entre a estrutura do desejo do psicanalista, que é de ser sempre novo, e a aptidão para encontrar o real da experiência analítica, enquanto presença que desafia radicalmente toda a apreensão pelo hábito.

Freud no livro dos chistes nos lembra :

"Do ponto de vista do esclarecimento sobre a natureza dos chistes, os chistes inocentes serão necessariamente mais valiosos para nós que os tendenciosos, tanto quanto os chistes profundos. Os chistes inocentes e triviais colocam-nos provavelmente o problema do chiste em sua forma mais pura, já que com ele evitamos o perigo de ser confundido por seu propósito ou equivocados em nosso julgamento por seu bom senso."

Não há como premeditar ou antever o surgimento de um chiste ou o surgimento de um analista, pois se trata do surgimento do sujeito do inconsciente. Por isso a Escola é um espaço onde os analistas são convocados ao trabalho, ao ato e ao dever ético, na transferência ao texto, para dar testemunho da experiência do inconsciente

Uma Escola, então, deve recolher esse caráter de surpresa e inesperado do inconsciente, é um limite que não deve ser forçado nem imposto, que deve deixar vir, esquecer e repetir, pondo em ato o “não saber” do inconsciente. Um espaço para dar testemunho sobre as peculiaridades da prática psicanalítica - sobre a Experiência de Saber.

É um “não saber” que ultrapassa o que fala, ou o que escuta, que faz o inconsciente pulsar e, nesta pulsação, aparece o desejo inconsciente. A transmissão da psicanálise está, assim, submetida à mesma ética da psicanálise, a da sustentação do desejo do analista.

Lacan utiliza a estrutura do chiste como modelo do passe, justamente por esse poder de transmissibilidade. A analogia entre a mensagem dada pelo autor do chiste e pelo autor da palavra do passe está no fato de se tratar de enunciados dotados do poder enigmático de ser transmissível. Um chiste é transmissível de boca em boca, por si próprio, sem a ajuda de nenhum militante.

Alain Didier Weill, em seu livro: Lacan e a clinica psicanalítica examina o processo do chiste, tomando um exemplo do livro do Freud - que ocorre entre dois parceiros; da posição de um deles, podemos dizer que representa a posição do analisando que deseja um objeto sexual, uma esposa, e a posição do outro, o casamenteiro, é comparável à do analista, cuja função é a de prorrogar a doação do objeto sexual.

A estória é a seguinte: o casamenteiro e o demandante vão visitar a bela, dotada, aparentemente, de todas as maravilhas. Ela abre a porta:

- Que horror! É uma anã!

- Não é grave, diz o casamenteiro, você gastará menos dinheiro para vesti-la.

- Mas, seu casamenteiro, ela é corcunda!

- Assim, os outros homens não olharão para ela.

- Mas, é zarolha também!

- Você pode falar mais alto, ela é surda também."

O enigma desta estória na palavra final, enunciada pelo casamenteiro, termina de uma vez por todas com o diálogo que poderia durar indefinidamente. Que palavra é esta que tem o poder de interrupção? É o que Lacan nomeou de escansão, e podemos, neste sentido, entender esta palavra final, como uma palavra do analista que efetua o corte em uma sessão analítica, neste caso especifico, levando ao riso.

A relação se modifica e o demandante, que estava ficando cada vez mais irado com relação ao casamenteiro, com o riso, muda de posição.

Através da palavra final do casamenteiro, que provocou o riso, surge o desejo inconsciente e o reconhecimento de que, para além do pedido insistente do demandante que tem uma única coordenada, a do objeto sexual, existe uma outra coisa nele, uma questão que permaneceu silenciosa, mas o casamenteiro conseguiu ouvir e se mostrar capaz de responder a seu chamado. Será que, para além do bem que desejo sexualmente, eu existo? Este "será" é que Lacan, usando o equívoco, escreve $, o sujeito do inconsciente.

Freud fala que esse chiste consiste na revelação de um raciocínio falho.




Bibliografia:

- Freud, Sigmund - Os chistes e sua relação com o inconsciente. Ed. Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de. , RJ. 1977, Vol. VIII , 1905.

- Lacan, Jacques - O Seminário, as formações do inconsciente. Livro 5, Jorge Zahar Ed., RJ, 1999.

- Weill, Alain Didier - Lacan e a clínica Psicanalítica. Contra Capa, R J,1998.

Um comentário:

  1. Gostei de ler um texto sobre a relação entre escola e chiste, principalmente na frase: "Uma Escola, então, deve recolher esse caráter de surpresa e inesperado do inconsciente...".

    Sandra Calleon

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