Maria Barcelos de Carvalho Coelho
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
Se acreditamos que os poetas ou alguns escritores nos aproximam de uma verdade onde pulsa uma memória da qual nada se sabe, vejamos como eles podem nos remeter à carta 52 de Freud à Fliess, escrita em 1896. Nesta carta talvez já possamos perceber o que seria mais tarde o sujeito do discurso preconizado por Lacan _ descentrado em seu “esplêndido caos”, como nos mostra Adélia Prado em seu poema “Antes do nome”. O próprio Freud já anunciava para o século nascente um certo deslocamento que vai se moldando na concepção desse sujeito por vir. “ O homem não é o senhor em sua própria morada.”
Não me importa a palavra esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos onde emerge a sintaxe,
Os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
O “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
Muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende a Deus
Cujo filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-
[muda,
Foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderia apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
A carta 52, nos apresentando as impressões fragmentadas do sujeito do inconsciente põe em questão uma teoria da memória até então dominante: todo arcabouço lógico do sujeito cartesiano ocidental, que até então se sustentava em suas “verdades”, ou certezas seria abalado em seu narcisismo. Mas para a nascente psicanálise, o inconsciente só poderia emergir de algum “sítio escuro”, escritura avessa que nada teria a ver com uma lógica de estímulos e respostas mas que surgisse de um jogo de percepção e apagamento ou rearranjo de registros.
Dirá Freud nos dois primeiros desses registros: W- Wahrnelmungen (percepções) (...) a consciência e a memória são mutuamente exclusivas. (...)WZ- Wahrnehmungszeichen_ (indicação de percepção) é o primeiro registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade. ²
A experiência clínica de Freud traz até então, uma concepção do aparelho psíquico como um sistema de inscrições _jogo de escritura. Podemos pensar esse jogo na vertente da constituição do sujeito enquanto efeito dessas inscrições na relação com o
Outro, onde algo de um objeto mítico se perde para sempre. Apagamento? Hiância que deixaria rastros de letras? Seria esse o “esplêndido caos”_ o recalque originário onde o desejo pulsa, como o peixe de Adélia? Eis aí a face enigmática da letra.
Para a construção do texto Lituraterra escrito no início da década de 70, Lacan tece uma espécie de zona de indicernibilidade entre a psicanálise e a literatura. Não lhe faltarão metáforas para dar conta desse fluxo comum entre estes dois territórios. Na medida em que o texto avança, Lacan visita alguns autores que provavelmente mergulharam no caos da letra ou se ocuparam com restos_ com o que há de mais obscuro na trama narrativa ou a marginalidade (escoria) de seus personagens.Seria então nesse sentido que ele nos apresenta o renascentista Rabelais e o dramaturgo Samuel Beckett _ este último precursor do teatro do absurdo, do oprimido. A partir daí Lacan faz alusão à carta 52.
Quando tiro partido da carta 52 a Fliess, é por ler nela o que Freud pôde anunciar , sob o termo que forjou WZ Wahrnehmungszeichen_, como sendo o mais próximo do ³ significante, numa época em que Saussure não o havia produzido.
Não obstante esta proximidade, o que parece estar subjacente neste texto é justamente uma outra possibilidade de extrair do inconsciente não apenas a linguagem (significante) que habita o ser, mas sim o que ele chama _ letra , aquilo que faz furo no saber e permanece como traço. Para conseguir o efeito dessa memória inconsciente e que se escreve, Lacan usa metáforas geográficas, geológicas e até pluviais. Traz a imagem das nuvens e a precipitação da chuva que cai sobre a terra. Incidência do significante na linguagem mas que se diferencia de letra como traço, sulcagem de onde pulsa uma língua um tanto quanto estrangeira, como nos testemunham os escritores aqui citados. Ou também como nos mostra Marguerite Duras. Ficar só para escrever livros desconhecidos para mim, e nunca previamente determinados, por mim nem por ninguém (4). Gozo que escapa e que no entanto, escreve-se?
A idéia de litoral e um assoreamento que aí se acumula como resto é evidente e a própria palavra Lituraterre recobre em francês um deslizamento metonímico entre os vocábulos: lettre (letra ou carta) litter (lixo) litière (lixeira). Ravinamento, esta é a palavra usada por Lacan. Segundo o dicionário Aurélio quer dizer: 1º Ravina : “ Enxurrada que cai de um lugar elevado”. 2º Ravinamento: Formação de sulcos em conseqüência de rápida erosão causada pelas ravinas”. Percebemos aí então através dessas metáforas a idéia que se pode extrair de letra em psicanálise:Rasura que bordeja; um furo no saber e uma verdade que não se pode dizer toda, “linguagem do dês-ser- L’être”(5).
Maria Barcelos de Carvalho Coelho
Belo-Horizonte, 13 de agosto de 2009
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
1. PRADO, ADÉLIA. Antes do nome. p. 30 Bagagem.
2. FREUD, SIGMUND. Carta 52. p. 325
3. LACAN,JACQUES. Lituraterra; p.19
4. DURAS, MARGUERITE . Escrever;p. 13
5. BECKER, SERGIO. Contribuição deste psicanalista por sua participação neste Seminário
Antes do nome ¹
Adélia Prado
Não me importa a palavra esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos onde emerge a sintaxe,
Os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
O “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
Muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende a Deus
Cujo filho é o Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-
[muda,
Foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderia apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.
A carta 52, nos apresentando as impressões fragmentadas do sujeito do inconsciente põe em questão uma teoria da memória até então dominante: todo arcabouço lógico do sujeito cartesiano ocidental, que até então se sustentava em suas “verdades”, ou certezas seria abalado em seu narcisismo. Mas para a nascente psicanálise, o inconsciente só poderia emergir de algum “sítio escuro”, escritura avessa que nada teria a ver com uma lógica de estímulos e respostas mas que surgisse de um jogo de percepção e apagamento ou rearranjo de registros.
Dirá Freud nos dois primeiros desses registros: W- Wahrnelmungen (percepções) (...) a consciência e a memória são mutuamente exclusivas. (...)WZ- Wahrnehmungszeichen_ (indicação de percepção) é o primeiro registro das percepções; é praticamente incapaz de assomar à consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade. ²
A experiência clínica de Freud traz até então, uma concepção do aparelho psíquico como um sistema de inscrições _jogo de escritura. Podemos pensar esse jogo na vertente da constituição do sujeito enquanto efeito dessas inscrições na relação com o
Outro, onde algo de um objeto mítico se perde para sempre. Apagamento? Hiância que deixaria rastros de letras? Seria esse o “esplêndido caos”_ o recalque originário onde o desejo pulsa, como o peixe de Adélia? Eis aí a face enigmática da letra.
Para a construção do texto Lituraterra escrito no início da década de 70, Lacan tece uma espécie de zona de indicernibilidade entre a psicanálise e a literatura. Não lhe faltarão metáforas para dar conta desse fluxo comum entre estes dois territórios. Na medida em que o texto avança, Lacan visita alguns autores que provavelmente mergulharam no caos da letra ou se ocuparam com restos_ com o que há de mais obscuro na trama narrativa ou a marginalidade (escoria) de seus personagens.Seria então nesse sentido que ele nos apresenta o renascentista Rabelais e o dramaturgo Samuel Beckett _ este último precursor do teatro do absurdo, do oprimido. A partir daí Lacan faz alusão à carta 52.
Quando tiro partido da carta 52 a Fliess, é por ler nela o que Freud pôde anunciar , sob o termo que forjou WZ Wahrnehmungszeichen_, como sendo o mais próximo do ³ significante, numa época em que Saussure não o havia produzido.
Não obstante esta proximidade, o que parece estar subjacente neste texto é justamente uma outra possibilidade de extrair do inconsciente não apenas a linguagem (significante) que habita o ser, mas sim o que ele chama _ letra , aquilo que faz furo no saber e permanece como traço. Para conseguir o efeito dessa memória inconsciente e que se escreve, Lacan usa metáforas geográficas, geológicas e até pluviais. Traz a imagem das nuvens e a precipitação da chuva que cai sobre a terra. Incidência do significante na linguagem mas que se diferencia de letra como traço, sulcagem de onde pulsa uma língua um tanto quanto estrangeira, como nos testemunham os escritores aqui citados. Ou também como nos mostra Marguerite Duras. Ficar só para escrever livros desconhecidos para mim, e nunca previamente determinados, por mim nem por ninguém (4). Gozo que escapa e que no entanto, escreve-se?
A idéia de litoral e um assoreamento que aí se acumula como resto é evidente e a própria palavra Lituraterre recobre em francês um deslizamento metonímico entre os vocábulos: lettre (letra ou carta) litter (lixo) litière (lixeira). Ravinamento, esta é a palavra usada por Lacan. Segundo o dicionário Aurélio quer dizer: 1º Ravina : “ Enxurrada que cai de um lugar elevado”. 2º Ravinamento: Formação de sulcos em conseqüência de rápida erosão causada pelas ravinas”. Percebemos aí então através dessas metáforas a idéia que se pode extrair de letra em psicanálise:Rasura que bordeja; um furo no saber e uma verdade que não se pode dizer toda, “linguagem do dês-ser- L’être”(5).
Maria Barcelos de Carvalho Coelho
Belo-Horizonte, 13 de agosto de 2009
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi.
1. PRADO, ADÉLIA. Antes do nome. p. 30 Bagagem.
2. FREUD, SIGMUND. Carta 52. p. 325
3. LACAN,JACQUES. Lituraterra; p.19
4. DURAS, MARGUERITE . Escrever;p. 13
5. BECKER, SERGIO. Contribuição deste psicanalista por sua participação neste Seminário
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