terça-feira, 14 de setembro de 2010

Seção Clínica, efeito de corte

Ida Amaral Brant Machado
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi


“A clínica é o real enquanto ela é impossível de suportar”
J. Lacan, Seção Clínica Onírica 1977


O texto que vou apresentar traz algumas questões pontuais, que busco formalizar a partir do lugar da seção clínica, na EFBH/iepsi, tendo como indagação: como a clínica psicanalítica pode ser objeto de uma transmissão? E também de interrogar ao psicanalista, como nos diz Lacan “de apertá-lo para declarar suas razões” sobre o exercício dessa práxis.

O engajamento com a experiência de fazer escola, sustentando o discurso analítico, nos remete ao compromisso ético da transmissibilidade da psicanálise, norteado pela operação do desejo do analista, de um analista que seja pelo menos dois “o analista para ter efeitos e o analista que esses efeitos os teoriza” (Lacan R.S.I. – Lição 10/12/1974).

O Colóquio “Experiência de Saber” nos coloca a trabalho e nos convida para debater esse “essencial do saber do psicanalista, é um saber colocado em interrogação” que nos permite enodar a intensão de uma análise com a extensão, uma não é sem a outra. Experiência de saber que toca a experiência do inconsciente, do saber não sabido, do rebotalho que a ciência não quer saber, onde os psicanalistas se debruçam, nos equívocos nos restos, nos sonhos, esquecimentos, chistes, atos falhos, etc, da ordem do “não realizado”.

Sabemos que Lacan fundou a Escola, no modelo da Grécia e dos tempos antigos, onde se fazia uma transmissão oral, um lugar de refúgio, onde se pudesse tratar o que se pode chamar do mal-estar da civilização. Os analistas agrupam-se na escola por um voto, regido não por um ideal, mas pela lógica do não-todo onde o “não sabido se ordena como uma moldura de saber” (Proposição) pois a escola é um lugar de verificação da experiência analítica onde se faz a transmissão, sustentada por uma transferência de trabalho, “uma escola para a psicanálise e não para os psicanalistas”. Não tem como negar que o real da experiência psicanalítica está na base da escola.

A transmissão da psicanálise era também uma questão freudiana, em Análise terminável e interminável (1937-p.281-284), ele diz que a análise do analista é fator determinante na sua formação, ele deve vivê-la “na própria carne” para possibilitar “sua convicção firme da existência do inconsciente” mas não dá todas as garantias apesar deste ser um percurso da passagem do analisante à analista.

Fazer escola nos instiga todo tempo para bordejar esse real que se apresenta nos dispositivos da escola como o cartel e o passe, nos lugares que se ocupa e nas funções que se exerce na escola. Gostaria de falar um pouco do espaço da seção clínica na EFPBH/iepsi, onde faço uma aposta para que uma formalização da experiência clínica seja possível, a partir do escrito de cada um, inscrevendo o lugar de cada analista com “suas razões” e com o que faz quando faz psicanálise.

A Carta de Princípios da EFBH/iepsi inscreve a Seção Clínica como: “lugar de corte que pretende formalizar o real da experiência clínica. A sustentação dessas discussões implica a responsabilidade de cada um com um dizer possível, extraído de recortes clínicos e posto à prova na reinvenção desta práxis e sua transmissão. É inerente a este lugar a exigência ética da análise do analista.”

Seção é uma variante de secção do latim sectione que segundo o dicionário Aurélio significa ato ou efeito de secionar-se, parte de um todo, linha ou superfície divisória, divisão ou subdivisão de um espaço, local, etc. Ao fazer corte de um recorte clínico há de ter efeitos, que só depois, se verifica: efeitos de sujeito, efeitos de analista, efeitos de análise...

Lacan na Seção Clínica (1977 – Ornicar) traz pontuações precisas e instigantes sobre a clínica psicanalítica, o psicanalista, o saber que se constrói numa análise, o inconsciente, que apresento para que possamos pensar sobre elas.

A clínica psicanalítica, não é complicada, diz ele, ela tem uma base, é o que se diz numa análise. Ele faz um jogo de palavras com o divanear analítico – direvent (dizer ao vento) divã, vanner : purificar, se vanter: gabar-se. Quando alguém se propõe a dizer qualquer coisa mas não em qualquer lugar. É a associação livre que traz um “vento”, onde pode-se “peneirar” algo que pode parecer um resto, um equívoco, que não serve para nada. Aparece um “saber” – trata-se do inconsciente.

“Há que clinicar, isto é, deitar-se. Kliné, leito, em grego. A clínica está sempre ligada ao leito, vai se ver alguém deitado”. Ele justifica a posição deitada, pois o homem não pensa da mesma maneira quando está deitado, é diferente de quando está de pé. “É deitado que ele faz muitas coisas, em particular o amor, que conduz a muitas declarações.” Para Lacan, “na posição deitada, o homem tem a ilusão de dizer algo que seja do dizer, isto é, que importa ao real.” A clínica vai se constituindo a partir do “discernimento de coisas que importam e vão se tornando densas” quando se tomam consciência delas.

O inconsciente é designado como uma equivocação. O equívoco é da ordem do significante, “há equívoco quando alguém se confunde de significante”. O significante não se significa absolutamente nada ele é arbitrário, Lacan traz, por exemplo, a Interpretação dos Sonhos, ele se pergunta “que sentido dar ao que Freud adiantou em sua Interpretação dos Sonhos? Senão que há palavras que ali se representam como podem?” Reconhece que esse texto é muito confuso e ilegível e a tradução não ajuda, não tem as mesmas qualidades do texto original em Alemão, que nem por isso fica mais claro a noção de inconsciente (Unbewusst).

Mas o inconsciente é ou não é um blá-blá? A Interpretação dos Sonhos não fala senão de palavras, de palavras que se traduzem, isso não é outra coisa senão linguagem na elucubração do inconsciente. Freud acabou fazendo lingüística sem sabê-lo pergunta sobre a negação no sonho, o que deixa em suspenso e se contradiz, o que não é o suficiente para fisgá-lo, mas continua surpreendente que a clínica psicanalítica não seja mais bem assegurada. Lacan pergunta “porque não se demanda razões ao psicanalista sobre o modo como de conduz nesse campo freudiano?” Ele diz que não está entusiasmado em dizer sobre o que “alguém sabe aonde vai quando faz psicanálise”, pois a psicanálise como todas outras atividades humanas está sujeita a enganos “faz-se como se soubesse alguma coisa,” e nunca se está tão certo que a hipótese do inconsciente tenha mais peso que a existência da linguagem.

Mas como a clínica psicanalítica pode ser objeto de uma transmissão se ela é o real como impossível de suportar? Lacan, no seminário Sinthoma diz que o real deve ser buscado do lado do zero absoluto. O real é inatingível, pode ser bordejado, contornado, dele se aproxima sem tocá-lo, pois não se liga a nada, carece de representação e que só podemos chegar a pedaços de real. O real que trata num pensamento é sempre um pedaço, um caroço, caroço em torno do qual o pensamento divaga.

Essa formalização da experiência clínica, como um pedaço de real, pode se fazer como escrita, com o texto de cada um e sua implicação com o que se transmite, sustentado na transferência de trabalho, à causa analítica, usando recursos topológicos, matêmicos, de um saber possível sobre o impossível do saber inconsciente, dá-se testemunho de uma prática e de um fazer quando se faz psicanálise.

A proposta de formalizar a clínica psicanalítica, via transferência de trabalho, nos levou a formar grupos de “ao menos três”, onde os membros da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi, se reúnem e se apresentam no espaço da seção clínica num dispositivo onde a partir de um que se apresenta com um recorte clínico, uma questão, outros dois, trazem um escrito, onde é pontuado e interrogado o lugar do analista. O que se produz com a escrita enoda o três e um dispositivo se mostra.

Termino com uma citação de Lacan sobre a clínica Psicanalítica: “A clínica psicanalítica deve consistir em interrogar não somente a análise, mas em interrogar os analistas a fim de que eles prestem contas do que sua prática tem de arriscada, que justifique a existência de Freud. A clínica psicanalítica deve nos ajudar a relativizar a experiência freudiana. É uma elucubração de Freud. Tenho colaborado, o que não é razão para manter-me aí. É preciso darmo-nos conta de que a Psicanálise não é uma ciência, não é uma ciência exata.” (J. Lacan – Ornicar- Seção Clínica 1977)  



Ida Amaral Brant Machado
Psicanalista
Membro da Escola Freudiana de Belo Horizonte/iepsi




Bibliografia



Freud, S. “Análise Terminável Interminável”. In: Obras Completas, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora 1937 (281-284)

Iepsi Documenta – Psicanálise, ensino, transmissão e clínica, 2006

Lacan, J. Abertura da Seção Clínica. Ornicar n°9, 1977 p.7-14 (reproduzido e traduzido Traço Freudiano – Veredas Lacanianas Escola de Psicanálise).

-“Ata da Escola Freudiana de Paris”, In: Documentos para uma escola. Revista da Escola Letra Freudiana, n°0. Rio de Janeiro, 1983.

-“Proposição de 9 de Outubro de 1967.” In: Documentos para uma escola. Revista da Letra Freudiana, n°0. Rio de Janeiro, 1981.

-“O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-76). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2007.

Machado, I.A.B. “De um pedaço de Real”. Revista Griphos n°23

Revista Letra Freudiana “Da experiência psicanalítica” Rio de Janeiro: 7 letras – 2009.

- “Do Real o que se escreve? Revista escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009



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